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O amor e o casamento - Parte 4 - Final

Publicado por Flávio Gikovate em Psicologia

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Conclusões

Há, ainda, muitos outros problemas na relação conjugal, mas na impossibilidade de abordar todos aqui, me aterei apenas a mais dois. Um deles é o medo do amor - tema curioso que comecei a desenvolver em 1978 no meu livro “O Instinto do Amor” e que nunca havia sido abordado anteriormente. Todas as grandes histórias de amor, especialmente as paixões, não tiveram continuidade e nem deram certo, aparentemente, em virtude de obstáculos externos. Em Romeu e Julieta o impedimento residia nas famílias. Na prática, os obstáculos externos são muito freqüentes: as pessoas são casadas, têm filhos pequenos, há dificuldades para a separação, problemas materiais ligados a ela, etc..

A minha experiência tem mostrado de modo claro que estes obstáculos externos à plena realização amorosa não são o verdadeiro problema. Divórcios tornaram-se possíveis. Ninguém mais se atém aos impedimentos familiares, nem à opinião dos pais; os filhos já não são problemas intransponíveis e metade das crianças já são filhos de pais separados; apesar disso, as pessoas continuam fugindo do amor desesperadamente. O obstáculo é interno; caso fosse externo, seria ótimo, porque se atribuiriam a ele as dificuldades, como se o problema fosse o impedimento de ordem social. E não é verdade! Ele é absolutamente interno! Esse medo de amor provavelmente tem a ver com a perda da individualidade. Se voltarmos àquela idéia inicial de que existem no homem duas tendências - uma para a integração e outra para a individuação -, quanto mais forte e entrosado o amor e quanto mais afins as pessoas forem, mais a tendência para dar certo existe, maior será a possibilidade de esse elemento de integração ser satisfeito e, talvez, para o elemento de individuação se sentir ameaçado, abalado. Diante disso, começamos a nos "travar" por medo de nos diluirmos, de nos fundirmos na outra pessoa.

Há em nós essa vontade de diluição e, ao mesmo tempo, pavor dela. Além do mais, nas histórias de amor - e eu acompanho centenas delas por ano - vemos essa dupla tendência: fascínio e medo presentes o tempo todo. Os indivíduos fascinam-se pelas histórias amorosas e entram em pânico diante delas.
É evidente que o amor, quando entre pessoas muito afins, é uma emoção muito forte. Dá uma sensação de simbiose, de diluição, onde um vai se perder no outro e isso pode ameaçar muito a individualidade. Muitas vezes são buscadas soluções intermediárias. Uma delas é a busca de pessoas opostas, com quantidade de defeitos suficientes para que a simbiose não se dê profundamente. Do mesmo modo que as qualidades fascinam e determinam a integração, os defeitos repelem. Então, uma cota certinha de qualidade e defeitos define uma coisa intermediária, um meio-termo ao qual o indivíduo se sente ligado, mas não a ponto de ameaçar a sua individualidade.

Uma outra solução é amar desesperadamente alguém que não nos ame muito. Neste caso, tendemos a nos fundir no outro, mas este não nos dá muita atenção, nos humilha, nos deixa meio sós... E agüentamos, porque isso nos dá certo equilíbrio. Estamos sempre correndo atrás da pessoa e ela não nos dá muita atenção. Isso também resolve o compromisso entre simbiose, integração e individuação.

Uma outra hipótese é nos encantarmos por uma pessoa bastante diferente de nós; além dos "defeitos", ela possui uma outra freqüência de ondas, pensa e sente de outro modo, manifesta-se diferentemente. Logo, não temos o problema da fusão, nos livramos de algo que nos apavora, ameaça a individualidade e determina o surgimento fortíssimo do que venho chamando, desde 1980, de "medo da felicidade".

Nada provoca nas pessoas maior sensação de felicidade do que o encaixe amoroso. Por outro lado, nada provoca no ser humano maior pavor do que a felicidade. E ao se aproximar o encaixe amoroso, as pessoas sujeitam-se a qualquer negócio para se afastar, porque a sensação de felicidade, plenitude, completude e harmonia é tamanha que o indivíduo passa a ter certeza de que, no mínimo, um raio cairá sobre a sua cabeça e ele, seguramente, morrerá. E a sensação é essa mesma, é fortíssima; quem ainda não a sentiu é porque não chegou perto da felicidade; ao chegar, verão que isso é absolutamente verdadeiro, não é uma hipótese, é um fato. É um medo difuso, uma iminência de catástrofe responsável pela existência milenar dos rituais supersticiosos; e o medo da felicidade é a sua causa: pessoas batendo na madeira e fazendo "figas" quando estão muito felizes. Se não houvesse medo não existiria esse ritual de proteção da "ira dos deuses" - parece que até eles se enfurecem quando estamos muito felizes. Tememos a nossa destruição pelos invejosos. E todo o conceito de "olho gordo" também se fundamenta e vem à tona nesse medo da felicidade. Sentimos que não temos estrutura para suportar tudo o que temos e que, certamente, algo de ruim nos acontecerá. Com isso, nós mesmos malogramos nossa felicidade; antes que os deuses "nos matem", destruímos sozinhos aquilo que nos está dando tanta alegria!

Essa é a grande causa da maior parte das brigas e dificuldades entre as pessoas que se amam demais e se entendem muito bem; sempre inventam um problema para ficar na dúvida se devem ou não ficar juntas. Não havendo obstáculos externos, quando jovens e decidem se casar, um sempre acaba falando ao outro: "Não sei se estou pronto, se quero, se já é hora", etc.; começa-se a procurar "pêlo em ovo". Quando demoram mais na decisão de se casar, aumenta a chance de ser um bom casamento! Um mau casamento pode ser decidido em três dias. Na verdade, o problema é "apenas" o medo da felicidade manifestando-se e, por vezes, bloqueando a sexualidade principalmente nos homens, o que é muito fácil, pois o homem é um animal fraco e meio assustado.

O medo da felicidade implica atraso na coragem de as pessoas se comprometerem e errarem na escolha (assim, não correrão o risco de "morrerem destruídas por um raio"). Se o ficar rico redunda em muita felicidade, é preferível ficarmos pobres, porque assim "garantiremos a nossa sobrevivência". É dessa forma que aparece psiquicamente a questão do medo da felicidade. E temos de tentar entender a sua origem; creio que está ligada ao trauma do nascimento e, portanto, é uma coisa dificílima e sem "cura". Não conheci ninguém sem esse medo.Sem dúvida, existem pessoas com menos medo; e elas são os nossos ídolos - dotadas de uma incrível coragem em todos os níveis, até no profissional. Mas aí, ao serem bem-sucedidas nessa área, destroem o sentimental. Quero ver as pessoas felizes e também que tudo lhes dê certo, porque dar certo no sentimental e ficar pobre é fácil. Quero que o indivíduo consiga tudo o que for bom para ele sem entrar em pânico, nem ter de "negociar" com os deuses, fato este curiosíssimo; sim, porque são negociações exatamente como as salariais: "Tenho isso, então dou aquilo; abro mão daquele outro; sustento meu irmãozinho vagabundo porque assim apaziguo a minha culpa de ter as coisas que tenho". E assim todos vão negociando sempre para aplacar a "ira dos deuses".

De uma forma ou de outra, nosso cérebro registrou a fase da simbiose uterina como um período de harmonia - talvez sem contratempos - quando comparado com o que acontece depois do nascimento. O primeiro registro cerebral é a harmonia e o segundo é a sua dramática ruptura: o nascimento, que é o grande trauma, tão bem descrito por Otto Rank - na minha opinião, um dos psicanalistas mais importantes. Sempre que se chega a uma sensação de harmonia parece que se ativa a lembrança em algum lugar do cérebro que nos assusta. Agora, não é mais o nascimento, é a morte. A destruição parece que se torna iminente sempre que a situação está muito agradável.

Volto a dizer: nada provoca uma sensação de medo mais forte que a felicidade amorosa, até por ser o que mais se parece com a simbiose uterina e, portanto, com a origem do próprio fenômeno, do medo da felicidade. A sensação de paz representa o útero. Se tudo estiver bem, evidentemente a próxima sensação é a de que algo horrível acontecerá e destruirá a paz.

Todo o pensamento místico e religioso acabou por reforçar isso terrivelmente com concepções ligadas à idéia de que o prazer e a felicidade são pecados, ou, pelo menos, não são grandes virtudes; mas o sofrimento, o sacrifício e coisas desse tipo o são. Portanto, quando o indivíduo está feliz, além de ter o medo da felicidade - e, conseqüentemente, essa sensação desagradável de iminência de tragédia -, também começa a se sentir em pecado. E esta sensação parece aumentar as chances de real punição, não só pela inveja dos humanos, mas também pela "ira dos deuses".

Para mim, esse é o grande obstáculo para se atingir a felicidade e está sendo subestimado. Não há solução absoluta para isso: a consciência - saber que tais mecanismos existem e que quando está tudo bem tendemos a fazer bobagens - é fundamental. Quantas vezes não ouvimos: "Está tudo bom, mas estou com medo de que não vai durar". O que isto significa? Eu mesmo já não estou agüentando tanta felicidade e tomarei uma providência para liquidar esse bem-estar, me autodestruir.

Hoje em dia, quando tenho um pensamento desse tipo, imediatamente penso: "O que é que vou fazer por não estar suportando tanta felicidade?" Eu me interdito, quer dizer, me impeço de fazer qualquer coisa que fuja da minha rotina básica, e se o fizer será destrutivo. Estou prontinho para cometer um erro, porque estou muito bem! E isso reativa um reflexo condicionado profundo e difícil de ser desfeito totalmente.

Enfim, termino reforçando um elemento, digamos assim, mais geral e mais teórico. A verdade é que nestes 100 anos de desenvolvimento da psicologia, as questões do amor e do casamento em nada evoluíram. As pessoas, além de desinformadas, continuam pensando muito mal sobre o assunto. Foram muito mais bem informadas sobre a questão sexual do que sobre a questão romântica. A desinformação grassa e um amontoado de idéias, na minha opinião, duvidosas - pelo menos não-provadas - abundam, as quais, insisto, deveriam ser banidas do nosso pensamento. Conjeturas que não podem ser confirmadas ou infirmadas são um perigo para o pensamento; deixam-nos em uma situação meio sem saída. Elas passam a ser uma questão de fé e a ciência não pode viver de questões de fé. Bons conceitos têm de levar a bons resultados, caso contrário, é porque não são bons. Quando teoria e prática não combinam, tem de valer a prática. E na nossa especialidade, muitas vezes tem valido a teoria, que é o que não nos interessa; só se ela chegar a algum resultado prático, concreto, útil e de valia.

A psicologia é uma ciência prática que deve servir para ajudar as pessoas a melhorar a sua qualidade de vida, o seu relacionamento consigo mesmo e com os demais. Idéias devem ser postas em prática; mas se elas forem falsas e falhas - o que aos poucos é o destino de todas elas -, devem ser substituídas por novas. Temos de retomar a noção de uma ciência em atividade, como aconteceu nos primeiros anos da psicanálise, e a idéia de uma ciência em processo de desenvolvimento e mudança.

Não estou defendendo aqui dramática e fanaticamente as minhas idéias. Apenas abordei algumas delas e as exponho a julgamento. Se aparecerem opiniões mais consistentes e que contradigam as que aqui foram colocadas, abandonarei imediatamente as minhas idéias e procurarei me adequar às novas, que expliquem e justifiquem melhor os novos fatos.
Para mim, esta é a essência de um modo aberto de pensar que poderá levar a bons resultados. E estamos aqui para colecionar novos dados - trabalhando, todos, em assuntos de psicologia, para que um dia ela se transforme em uma ciência a mais objetiva e útil possível.


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Sobre o autor
flavio
Flávio Gikovate é um eterno amigo e colaborador do STUM.
Foi médico psicoterapeuta, pioneiro da terapia sexual no Brasil.
Conheça o Instituto de Psicoterapia de São Paulo.
Faleceu em 13 de outubro de 2016, aos 73 anos em SP.
Email: [email protected]
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