Momentos

Autor Sylvia R. Pellegrino - [email protected]
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Nos caminhos da Cândido Lopes, na bela capital paranaense, lá pelas décadas de 70, todos podíamos andar livremente. Os passantes eram poucos e a pressa nem tanto. A maioria tinha a alegria do ir para casa, às 18 horas. Era o momento da Ave-Maria, do entardecer, do encontrar amores. Hora do descanso merecido.

Também eu seguia na busca do sossego de casa, porém o coração vivia oprimido. Era uma época de transição. A viuvez prematura aos vinte e três anos, filho pequenino. Tantas responsabilidades! O mundo parecia grande demais enquanto minha pequenez se acentuava. Os momentos de lazer inexistiam. Era preciso viver o luto. A família toda o esperava.

Sob aquela janela eu cometia o pecado do atraso. O som do sax saía belo e afinado, enchendo aquelas esquinas da cidade de alegria. Naquele instante eu parava e deixava minha alma lavar a tristeza que a inundava. As lágrimas rolavam soltas. Era o meu momento comigo mesma. O único talvez, naquela época.

Era o momento em que sentia as comichões da escrita encalacrar meu peito. Após ouvir a música caminhava lento, enquanto a cabeça enrodilhava frases soltas que nem sempre iam para o papel. Poemas eram feitos com pedaços do que lembrava, dos sentimentos inundados.

Certa vez uma amiga resolveu entregar meus poemas para Walfrido Piloto e Pompília dos Santos, dois imortais da Academia Paranaense de Letras. Ouviu os elogios às minhas composições, conselhos e proposições para acompanharem meu trabalho e a edição de um livro. A apatia era tão intensa que deixei passar o momento.

Anos mais tarde, quando já aposentada, filho formado, voltei a escrever com o afã dos velhos tempos. Já não mais poemas, mas contos, romances, crônicas. Tudo saía aos borbotões, como se o dique dos sentimentos explodisse e a torrente estancada corresse célere. Livros foram impressos e publicados.

Era o tempo em que a vida corria tranqüila e os carinhos eram recebidos de forma amena e gentil. Tudo conspirava para que a felicidade se fizesse. Vezes infindas saíamos meu marido e eu para ouvir música. Ela sempre fora minha fonte de inspiração.

Em uma dessas ocasiões adentramos um bar da cidade e o encontrei. O saxofonista, que um dia me emocionara tanto e trouxera momentos de paz à minha angústia temporária, lá estava, emocionando a muitos ouvintes embevecidos com seu som. Não tive coragem de falar com ele pessoalmente. Minha timidez por vezes me impede de gestos que gostaria de demonstrar. Meu coração, no entanto, entoou uma prece silenciosa em agradecimento àquele artista pelo bem que ele me fez, em tempos idos.


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Conteúdo desenvolvido por: Sylvia R. Pellegrino   
Sylvia R. Pellegrino é advogada e escritora. Escreve romance, contos e crônicas. Tem blogs no wordpress: Ecos da Terra, O Anjo Humano, Blog de Conto.
E-mail: [email protected] | Mais artigos.

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