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Morte e consumo

por WebMaster em Autoconhecimento
Atualizado em 18/07/2001 10:42:07


Enviado por: Gisele

CIDADE do México, 1994.
A maneira como morremos diz aquilo que fomos. A morte define a nossa vida. É um espelho que reflete os gestos sem sentido dos vivos. A vida de cada um de nós - toda essa confusão de múltiplas ações, omissões, desgostos e esperanças que é a nossa existência – não encontra na morte um sentido ou explicação, mas um fim. A nossa morte ilumina a nossa vida. Se à nossa morte faltar sentido, é porque a nossa vida também não o teve. Cada um de nós morre da morte que procura, da morte que construiu para si próprio. A morte de um cristão ou a morte de um cão refletem diferentes formas de vida.

Hoje em dia, a morte não tem qualquer significado que a transcenda ou que a relacione com outros valores, como sucedia, por exemplo, no antigo México. Nesses tempos, a oposição entre vida e morte não era tão absoluta.
A vida estendia-se para além da morte e vice-versa. A morte não era o fim natural da vida mas sim uma fase de um ciclo infinito.
A morte, na sociedade de consumo dos nossos dias, é raramente algo mais do que a conclusão inevitável de um processo natural. Num mundo de fatos, a morte é apenas mais um. Mas porque é um fato tão desagradável e contrário a todos os nossos conceitos, a filosofia do progresso ainda reinante pretende fazer desaparecer a morte, tal como o mágico faz desaparecer a moeda.

Tudo na nossa sociedade de consumo funciona como se a morte não existisse. Ninguém a toma em consideração, é suprimida em toda a parte: nos discursos políticos, na publicidade comercial, nas séries de televisão e nos hábitos populares.

Estes pensamentos atravessaram-me a mente pela primeira vez há alguns anos, quando refletia no meu livro Labirinto de Solidão sobre o dia da Festa de Finados no México. Mas hoje sinto-os ainda mais verdadeiros.
O materialismo consumista não só tentou suprimir a morte na sua perspectiva unidimensional do presente, como agora parece possuído por um desejo prometeico de “curar” a morte através da tecnologia. Isto parece-me a obsessão última do conceito de encontrar o “paraíso aqui e agora”, uma versão barata do hedonismo, totalmente oposta ao hedonismo de Epicuro, que defendia a vida baseada nos prazeres dos sentidos, mas com pleno conhecimento e aceitação dos limites da vida.
Ao mesmo tempo, esta tem sido a época da morte de massas. Neste século de Auschwitz, Hiroshima e Bósnia, ninguém pensa sobre a sua própria morte, como o poeta alemão Rainer Maria Rilke nos pedia que fizéssemos, já que ninguém vive uma vida que seja só sua. A morte, como o indivíduo, desaparece na corrida consumista para a felicidade, mesmo quando espreita sombria como uma realidade coletiva em holocaustos inexprimíveis.

O medo faz-nos virar as costas à morte e, ao recusarmo-nos a contemplá-la, fechamo-nos à vida, que é uma totalidade que a inclui. No começo da sua ´Duino Elegy´, Rilke diz que a “criatura”, na sua condição de inocência animal, “contempla o espaço aberto”. Isto é oposto àquilo que fazemos, já que nunca olhamos para o absoluto.

O “espaço aberto” é onde os contrários se reconciliam, onde a luz e a sombra se fundem. Esta concepção devolve à morte o seu significado original: morte e vida são opostos que se complementam um ao outro. Cada um deles é metade de uma esfera que a nossa visão, fixada numa só dimensão do tempo e do espaço, não consegue alcançar. No mundo pré-natal, vida e morte estão fundidas; no nosso mundo, estão opostas; no além, reúnem-se de novo, não na inocência animal que precede o pecado e o conhecimento do pecado, mas na inocência recuperada. O homem, se conseguir desligar-se do imediato, pode transcender a oposição temporal que separa estas esferas e entendê-las como um todo superior. Tem de se abrir à morte se se quiser abrir à vida. Então será, segundo diz Rilke, “como os anjos”.

No seu poema “Muerte sin Fin”, José Gorostiza fala-nos da sua prisão de aparências - para ele, as árvores e os pensamentos, as pedras e as emoções, dias, noites e entardeceres, são simples metáforas, meras fitas coloridas. O ar que define estas aparências e dá forma à matéria, avisa ele, é o mesmo ar que as corrói, as deteriora e aniquila. O poeta recorda-nos que uma civilização que nega a morte acaba por negar também a vida.

(Octavio Paz em EXPRESSO 25/4/98. Tradução de Aida Macedo)

Uma reflexão de Octavio Paz
poeta mexicano,
Prémio Nobel da Literatura.
Faleceu a 19/4/98.


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