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Um pedreiro literário

por WebMaster em Autoconhecimento
Atualizado em 04/10/2001 12:49:43


Recebido de Ana Cristina Carneiro

p/ Eliane Azevedo
Livros, muitos livros, empilhados de forma desordenada - Proust descansa sobre Ken Follet e, ao menor descuido, pode desabar sobre um livro de culinária em japonês. O cenário só é caótico, porém, para espíritos menos apaixonados pelas letras. Não para o pedreiro Evandro dos Santos, que transformou a garagem de sua casa, na Vila da Penha, na única e verdadeira biblioteca comunitária do Rio.
“Não existem analfabetos, apenas intelectos não-lapidados”, sentencia o sábio pedreiro. Imbuído dessa filosofia, ele instituiu um sistema invejável de livre acesso aos 19 mil volumes que compõem seu acervo. A biblioteca abre na hora em que o leitor chega e fecha quando o último vai embora. Para retirar uma obra, basta apenas preencher seu nome e intenções num caderno, desses de capa dura. “Vou ficar até o final do ano letivo com os seguintes livros”, avisa, no caderno, a cliente Maria da Conceição Albrile, antes de listar uma série de títulos didáticos. “Devolvi História do Brasil e estou levado Geografia”, atesta outro, com a assinatura Jalbert da Fonseca.

Ah, é tudo de graça. Assim como as feijoadas e saraus literários que o sergipano Evando promove no quintal, freqüentados por poetas locais, professores, literatos de toda a ordem. É quando ele pode abrir o verbo e declamar, com olhos brilhantes e voz empostada, seu poeta favorito, o conterrâneo Tobias Barreto, ilustre jurista do final do século 19: “Tive sede do infinito/gênio, feliz ou maldito/a Humanidade sou eu”.

Não podia ser outro o patrono da biblioteca, batizada com o nome completo do poeta, Tobias Barreto de Menezes. A maneira como Evando conheceu a obra do douto nordestino é tão peculiar como todo o resto de sua história. Ainda em Aquidabã, sua cidade natal, ele era um aficionado por literatura de cordel. Chegou a possuir uns 300 livretos, que, sem ter freqüentado a escola, mal conseguia soletrar - o melhor era decorar. Aos 18 anos, veio para o Rio e converteu-se à Igreja Batista de Vista Alegre. Foi o pastor que o ensinou a ler, usando a Bíblia como cartilha. E o mundo ficou imenso. “O livro é vida. Sem ler, a gente vira robô”, emociona-se.

Entre marmitas - Se o pastor o levou às primeiras letras, um colega pedreiro o apresentou ao universo das palavras. Corta para 20 anos atrás. Hora do almoço para os operários que constróem a Vila do João, onde ficavam as palafitas da Favela da Maré. Evando põe a marmita de lado e bebe as palavras de Dernival Pereira dos Santos, que, empolgado, disserta sobre literatura, filosofia e poesia - um professor travestido de mestre-de-obras. “Você é sergipano e não conhece Tobias Barreto?”, provoca Dernival. “Ele me despertou a curiosidade de conhecer os livros de que falava. E me ensinou a nunca falar sobre o que eu não soubesse explicar”, conta.

Proveitosa lição. As crianças e adolescentes que formam o núcleo mais ativo de freqüentadores da biblioteca sabem que, quando Evando fala de um livro, tem conhecimento de causa. “Leva Monteiro Lobato”, aconselha ele à Nathalia Cristina de Lima e Silva, de 12 anos, que busca uma obra para um trabalho escolar. A menina, porém, prefere algo no gênero suspense, em homenagem ao Halloween que se aproxima. Sai carregando As minas de rei Salomão, de R. Haggard, na tradução de Eça de Queiroz, e, pelo sim, pelo não, uma mais prosaica Agatha Christie.

Vizinho de Evando, Rafael Eduardo Lima, de 12 anos, já capitulou. “Adoro Monteiro Lobato. E as Fábulas de La Fontaine”, decreta. Debruçada sobre uma obra mais densa - Aids: e agora? -, Verônica Henrique da Silva Gomes, de 16 anos, confessa: “Passo aqui quase todos os dias, para dar uma olhada”. Não é à toa que Evando tanto gosta de lembrar a máxima do faraó Ramsés II: “A biblioteca é o remédio do espírito”. “E olha que nem era livro naquele tempo, né, eram tijolinhos de argila”, lembra ele.

Montagem - Ironicamente, foram os tijolos que levaram Evando a montar sua biblioteca. Em 1998, foi fazer uma obra numa loja e deparou-se com cerca de 50 livros, empoeirados e esquecidos, que iriam direto para o lixo. Entre eles, havia a História do Brasil de Pedro Calmon e a coleção completa de Euclydes da Cunha. Evando levou tudo para a casa e teve seu momento de Eureka. “As bibliotecas são túmulos. Não se pode falar. É uma burocracia danada para pegar um livro: tem que ter cadastro, foto, dinheiro”, enumera.

Começou a pedir doações em tudo quanto era canto. Milhares de livros foram buscados de ônibus, atravessando a cidade, pelo incansável Evando. O sucesso foi instantâneo. Pudera. A dificuldade é zero. “Tem gente que gosta tanto do livro que fica com ele e não devolve. Não tem importância”, garante. Parece o milagre da multiplicação dos pães e peixes: foi só um desses fãs desaparecer com O capital , de Karl Marx, para outros dois serem doados em seguida. Idosos, gestantes ou até preguiçosos são perdoados. Evando pega um ônibus e leva a obra querida a domicílio. “Sou um carteiro literário”, define.

Ele orgulha-se em dizer que sua biblioteca tem um considerável acervo em japonês e alemão. Há um compêndio de medicina em francês editado em 1900, uma Bíblia em latim de 1852 e talvez a única edição conhecida da História dos mártires evangélicos, de 1817. Engana-se quem acha que essas obras raras são guardadas a sete chaves. “Ninguém rouba livro”, diz o sergipano, convicto - embora um pouco amistoso terrier tenha sua morada a poucos metros da garagem. Além da segurança, o eriçado cãozinho é um tenaz combatente dos maiores inimigos da biblioteca: os ratos.

Espaço - Essa praga, mais a constatação inevitável de que há menos metros livres do que livros, que já invadiram a casa e o quarto que Evando compartilha com a mulher, Maria José - que cursou Letras, mas não nutre o mesmo entusiasmo do marido pelas pilhas que entulham seu lar - fizeram com que o pedreiro sonhe em construir uma sede para a biblioteca. Ou, quem sabe, conseguir comprar um carro para pegar mais livros. Tem também o projeto de criar ali um centro de alfabetização de adultos, uma escola de línguas, uma oficina literária... Socialista e cristão, Evando só não compartilha um tesouro: a biografia de Tobias Barreto, do pesquisador italiano Mario Losano, que a muito custo conseguiu comprar (R$ 150!) na prestigiada livraria Leonardo da Vinci.


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