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Almas gêmeas e o Mito do Andrógino

por Adília Belotti em Espiritualidade
Atualizado em 05/11/2004 12:20:32


Não tem mesmo jeito. No fundo, no fundo, todos nós nutrimos a fantasia de que em algum lugar deste pequeno planeta alguém está esperando, olhando para o mesmo céu e, sem nem saber que a gente existe, pensando em nós...

A cara metade. A alma gêmea. O pedaço de mim. Quem é este Outro que deveria nos completar? E por que, apesar dos nossos esforços, ele parece sempre resistir. Sempre um pouco adiante, mais longe e mais longe... sempre tão Outro, tão distante de mim.

“A vida é a arte do encontro”, dizia o poeta, antes de concluir, “embora haja tanto desencontro pela vida”.

O que será que a gente espera deste encontro? A julgar pelo que dizem os mitos, as lendas, as canções, os poemas e as notícias de jornal, queremos tudo. Nada menos do que a plenitude, nem uma migalha faltando para nos sentirmos completos, inteiros e justificados...

Você conhece o Mito do Andrógino? Está no Banquete, do filósofo grego Platão. Vou contar a história, mas antes de começar, dois lembretes. Não entenda mito como mentira, fábula. Não. Os mitos são histórias nascidas da alma coletiva dos seres humanos. Intuições profundas transformadas pela mágica das palavras em contos. E andrógino, mais do que ser um e outro, homem (andros) e mulher (gyno), como a gente em geral pensa, é ser um só. Andrógino é o ser quase perfeito porque, assim como os deuses, ele contém em si mesmo todas as oposições, ele se basta a si mesmo e, completo e fecundo, dá a luz a si próprio. Em muitas mitologias, o primeiro homem era um andrógino, assim como será o último de nós.

E, então, lá vai a história. No início, a raça dos homens não era como hoje. Era diferente. Não havia dois sexos, mas três: homem, mulher e a união dos dois. E esses seres tinham um nome que expressava bem essa sua natureza e hoje perdeu seu significado: Andrógino. Além disso, essa criatura primordial era redonda: suas costas e seus lados formavam um círculo e ela possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com duas faces exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo. A criatura podia andar ereta, como os seres humanos fazem, para frente e para trás. Mas podia também rolar e rolar sobre seus quatro braços e quatro pernas, cobrindo grandes distâncias, veloz como um raio de luz. Eram redondos porque redondos eram seus pais: o homem era filho do Sol. A mulher, da Terra. E o par, um filhote da Lua.

Sua força era extraordinária e seu poder, imenso. E isso tornou-os ambiciosos. E quiseram desafiar os deuses. Foram eles que ousaram escalar o Olimpo, a montanha onde vivem os imortais. O que deviam fazer os deuses reunidos no conselho celeste? Aniquilar as criaturas? Mas como ficar sem os sacrifícios, as homenagens, a adoração? Por outro lado, tal insolência era perfeitamente intolerável. Então...

O Grande Zeus rugiu: Deixem que vivam. Tenho um plano para deixá-los mais humildes e diminuir seu orgulho. Vou cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas pernas. Isso com certeza irá diminuir sua força, além de ter a vantagem de aumentar seu número, o que é bom para nós. E mal tinha falado, começou a partir as criaturas em dois, como uma maçã. E, à medida em que os cortava, Apolo ia virando suas cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada. Uma lição de humildade. Apolo também curou suas feridas, deu forma ao seu tronco e moldou sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro, para que eles lembrassem do que haviam sido um dia.

E foi aí que as criaturas começaram a morrer. Morriam de fome e de desespero. Abraçavam-se e deixavam-se ficar assim. E quando uma das partes morria, a outra ficava à deriva, procurando, procurando...

Zeus ficou com pena das criaturas. E teve outra idéia. Virou as partes reprodutoras dos seres para a sua nova frente. Antes, eles copulavam com a terra. De agora em diante, se reproduziriam um homem numa mulher. Num abraço. Assim a raça não morreria e eles descansariam. Poderiam até mesmo continuar tocando o negócio da vida. Com o tempo eles esqueceriam o ocorrido e apenas perceberiam seu desejo. Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque mesmo derretendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E a saudade da união perfeita renasceria, nem bem os últimos gemidos do amor se extinguissem.

E esta é a nossa história. De como um dia fomos um todo, inteiros e plenos. Tão poderosos que rivalizávamos com os deuses. É a história também de como um dia, partidos ao meio, viramos dois e aprendemos a sentir saudades. E é a razão dessa busca sem fim do abraço que nos fará sentir de novo e uma vez mais, ainda que só por alguns momentos (quem se importa?), a emoção da plenitude que um dia, há muito tempo, perdemos.

Não é à toa que aqui e ali, entre os chineses e os hindus, por exemplo, tenham florescido rituais, técnicas e filosofias, cujo objetivo era transformar a energia que nascia deste abraço em energia espiritual e fazer do sexo o caminho para o divino. Algo que, de fato, pudesse preencher o vazio de que somos feitos. Alguma coisa forte o bastante, para nos alçar de novo até o alto da montanha dos deuses. Mas esta história eu conto numa outra vez...



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adilia
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM.
Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma.
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