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Histórias de montanhas

por Adília Belotti em Espiritualidade
Atualizado em 15/04/2005 13:44:45


Dizem que Jung acreditava que a natureza particular de um lugar moldava o caráter das pessoas que nasciam e se criavam ali. Contam que seu exemplo favorito desta teoria, que escapava de qualquer tentativa de comprovação, era que mesmo um aborígine da Austrália, se fosse viver na Suíça, logo estaria impregnado pelo espírito das altas montanhas dos Alpes.
Um bom amigo do velho e sábio pensador, Lauren van der Post, resgata esta memória de sua convivência com Jung junto com uma reflexão intrigante: “Creio que Jung, sem dúvida, se declarasse assim porque a Natureza, em todas as suas formas não se constituía numa realidade fria, impessoal e objetiva, mas era a expressão de uma forma simbólica que evocava tudo que havia de simbólico dentro do espírito do homem”.
Pensando nisto, entendi as montanhas...


Não sei que idade eu tinha quando fui engolida pela montanha. Sei que a altura inimaginável e a violência da queda d’água que mergulhava no abismo ocuparam meus sonhos durante anos. Por conta deste mergulho imaginário na Cascata do Caracol, aninhada entre as Serras Gaúchas, acreditei que sofria de vertigem. Sempre lutei contra esta sensação que sugeria uma limitação incompreensível para meu espírito ariano. Mas ficava um certo desconforto, um distanciamento. Aprendi a apreciar de longe as altas montanhas e a amar o mar. Mas, ultimamente, meus caminhos me fizeram chegar perto delas e fui obrigada a deixá-las invadirem minha paisagem...

Foi assim que trinta e cinco anos depois, voltei para o Sul. E lá estava ela me esperando: a grande queda d’água. Parecia viva - feito animal - mas tinha a força do imponderável. Achei que ia morrer de medo, agravado pela modernidade impossível, absurda mesmo, da presença de um... teleférico! E mesmo sem entender porque, lá fui eu - de algo iam servir as horas de disciplina - respirando pelo abdome e treinando a concentração.

Costumava brincar que o lugar dos homens não era no alto das montanhas. Não nos cabia olhar o mundo da perspectiva de Deus. Nosso lugar era lá embaixo, nos vales. Lá nosso olhar se elevaria em reverência diante da majestosa obra divina. Com a nossa minúscula dimensão impressa nos olhos, cumpriríamos alegres nosso cotidiano, certos de que, lá em cima, nos picos onde a neve nunca derrete e onde nem mesmo a vegetação mais rasteira ousa chegar, alguém velava por nós, cá embaixo...
Que outra razão a não ser revelar os mistérios explicaria as montanhas?

É porque há muito, muito tempo atrás, in illo tempore, que é onde os mitos sempre começam, o Céu e a Terra estavam muito próximos um do outro. Tão próximos que os seres podiam facilmente chegar até os deuses, bastava escalar a alta montanha que, em geral, servia também de eixo que mantinha o mundo em equilíbrio. Axis mundi, dizem em latim, os estudiosos, o Centro do Mundo, contam as histórias. Quem não tinha montanhas, apelava para as escadas, as cordas, os troncos das grandes árvores, as torres rebuscadas das catedrais góticas...

Mas, as montanhas... Para os gregos, por exemplo, esta axis mundi era o Olimpo, a ensolarada morada dos deuses. De lá do alto eles observavam os homens, e eventualmente desciam, para se imiscuir nos seus negócios, amar as mais lindas de suas mulheres ou homens, fazer cumprir uma justiça, que pouco tinha a ver com a nossa: ora selvagem, ora civilizatória, parecida com a justiça tão dura da Natureza.
Uma destas ocasiões em que os deuses vieram visitar os homens foi o casamento mortal de Cadmo e de Harmonia. E talvez tenha sido das últimas vezes em que os homens e os deuses sentaram-se à mesma mesa. Deve ser por isso que, já se sentia aqui e ali uma certa nostalgia. Roberto Talasso descreve:

<>“Uma vida à qual os deuses não estão convidados não vale a pena ser vivida. (...) Nos numerosos salões do palácio de Tebas ouvia-se um burburinho persistente, um frêmito de pés apressados, um cruzamento sonoro. Todos os deuses haviam descido do Olimpo para o casamento de Cadmo com Harmonia. Andavam pelos quartos e salas, atarefados e loquazes. Afrodite se preocupava em enfeitar o leito nupcial. Ares, bobo e alegre, sem suas armas, ensaiava um passo de dança. As Musas ofereciam o leque de todos os cantos. As asas de Niké (a justiça divina) que se divertia no papel de criada, tocavam as de Eros, veloz como uma flecha. No final, se apresentaram os noivos: eretos como estátuas, num carro puxado por um leão e um javali. Apolo tocava a cítara ao lado do carro. Ninguém se surpreendeu ao ver aqueles animais insólitos: Harmonia não significava juntar o oposto e o selvagem? Ao pôr-do-sol acenderam-se milhares de archotes. Zeus caminhava pelas estradas de Tebas. Gostava da cidade (dos homens): lembrava o céu”.

Não muito tempo haveria de passar antes que os deuses fossem, lenta e majestosamente deixando a Terra e recolhendo-se aos seus palácios celestes. Os cumes das montanhas foram aplainados, os troncos das árvores cortados, as cordas e as escadas destruídas. Anjos, dragões ou monstros postaram-se à entrada dos portões, barrando para sempre a nossa passagem. Em todas as partes do mundo, os mitos falam de um tempo paradisíaco, onde os homens e os deuses conviviam como amigos. Tempo em que nós conseguíamos entender a língua “dos deuses e dos anjos”. Um tempo de harmonia que deve necessariamente acabar, para que a aventura humana comece, mas que deixa uma saudade assim sem remédio.

É este o mistério das altas montanhas, esta saudade. Esta certeza de que em algum lugar além das nuvens, eles continuam nos vendo. Talvez pelas frestas do mundo, espiem e guardem. Talvez agora mesmo estejam nos envolvendo em seu olhar amoroso e risonho, nos incluindo em suas bênçãos. A nós, resta olhar para cima, buscando sempre... ou ousar o medo, mergulhar na vertigem do abismo e tentar enxergar na vastidão impossível, os códigos que tornarão inteligível para nós, ainda uma vez, a doce fala dos deuses...


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adilia
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM.
Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma.
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