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O apoio espiritual no momento da morte

por Bel Cesar em Espiritualidade
Atualizado em 15/04/2002 10:44:49


CASO MARCELO

Em outubro de 1991, um grande amigo, o mestre espiritual budista Lama Segyu Rimpoche, me disse: “Você está cheia de medinhos. Acho que eles são todos um só grande medo: o medo de morrer. Por que você não começa a lidar com esse grande medo diretamente, trabalhando com pacientes que estão na sua fase final de vida? Aliás, a sua energia é muito boa para ajudar as pessoas nesse momento”.

Como internamente já havia me decidido a ajudar as pessoas no momento da morte, essas palavras despertaram o desejo de concretizar minha intenção, que era secreta até aquele momento.

Quinze dias depois, um amigo me contou que seu irmão estava com Aids, já há oito anos. Ele me perguntou se eu poderia ajudar seu irmão, que enfrentava dias difíceis por causa do agravamento do seu estado de saúde. Marcelo, de 28 anos de idade, foi meu primeiro paciente.

Quando fui visitá-lo em sua casa pela primeira vez, ele já estava muito fraco. Eu lhe disse que era psicóloga e que seu irmão havia me chamado. Eu também falei a ele que, apesar de estarmos em situações muito diferentes naquele momento, tínhamos algo em comum: eu também tinha medo de morrer.

O fato de eu não estar doente poderia parecer uma vantagem, mas Marcelo também tinha um benefício: como não tinha mais como evitar esse medo, poderia dedicar-se a resolvê-lo, enquanto eu procurava negá-lo com freqüência.

Contei então a Marcelo que eu conhecia um método para ajudá-lo a superar o medo de morrer e que poderíamos trilhar juntos esse caminho. Ele pediu para segurar minha mão e, depois de me olhar profundamente nos olhos por algum tempo, disse que sim, que gostaria de tentar o que estava lhe propondo.

Durante oito meses, acompanhei suas internações em diversos hospitais. Como geralmente o atendimento público no Brasil é muito precário, compartilhamos cenas, juntamente com outros pacientes, de muito sofrimento e dor. Como não podíamos negar esse sofrimento, aprendemos a encará-lo a cada momento. A dois, ele se tornava mais fácil.

Passávamos horas conversando sobre a natureza do sofrimento, como ele se forma e como podemos transformá-lo. Falávamos sobre sua vida, sobre minha vida, nossos medos e esperanças. Eram encontros sempre diretos e sinceros. Muitas vezes também, simplesmente não conversávamos. Eu apenas ficava ali, ao seu lado. Recitava mantras, enquanto segurava sua mão ou dirigia visualizações inspiradas na tradição budista, com um fundo musical. Sugeria que ele visualizasse uma luz branca no topo de sua cabeça, descendo e preenchendo todo seu corpo de luz. Essa luz eliminava todas as negatividades, que saíam então pela sola dos pés na forma de uma fumaça negra. Ao final, seu corpo ficava totalmente preenchido por essa luminosidade.

Marcelo tinha um jeito divertido. Às vezes, até em momentos de dor física conseguíamos rir com seus comentários. O contato com seus familiares também era muito caloroso; nossa confiança mútua tornou-se preciosa e de grande conforto e ajuda.

Às vezes eu gravava textos sobre os assuntos que estávamos conversando, para que ele pudesse escutá-los na minha ausência. Eu o visitava uma ou duas vezes por semana. Os encontros tornavam-se mais freqüentes conforme seu estado físico e emocional.

Duas semanas antes de falecer, ele me disse: “Quando tenho dor, tenho algo contra o que lutar. Mas quando a dor passa, sinto um grande vazio, pois não tenho nada para fazer ou pensar a não ser esperar a morte. Eu não quero morrer”.

Senti sua dor entrar profundamente em meu coração e, então, respondi: “Neste momento você tem a oportunidade mais preciosa de sua vida! Você pode fazer o que sempre quis: perdoar a si mesmo e aos outros de suas culpas e ressentimentos. Aproveite cada momento de sua lucidez para fazer isso”.

Ensinei-lhe, então, uma meditação específica para o perdão, que pode ser praticada em qualquer momento da vida, especialmente quando precisamos nos liberar de ressentimentos: “Visualize uma luz branca no topo de sua cabeça. Essa luz vem de algo totalmente puro (para ele, vinha de uma cascata). Ela entra pelo topo de sua cabeça e penetra em cada célula de seu corpo, purificando todas as negatividades, que saem por cada poro de sua pele e se dissolvem no espaço. Concentre-se dessa forma até sentir que todo o seu corpo está preenchido de luz branca. De todos os seus poros sai essa luz branca, formando um grande raio brilhante à sua volta. Visualize agora a pessoa que você quer perdoar à sua frente, dentro desse raio. Sua luz branca passa a entrar no coração dela, dissolvendo suas mágoas. Suas luzes se unem como expressão de seu perdão. Ao final, pense que essa pessoa está de fato recebendo essa energia de perdão onde quer que esteja, nesse mesmo momento.”

Como já vínhamos fazendo exercícios como esse, Marcelo estava familiarizado com as visualizações. Mesmo assim, deixei para ele algumas fitas com músicas para meditação, para ajudá-lo a concentrar-se e a relaxar.

Em nosso encontro seguinte, ele disse que estava fazendo as visualizações com muita freqüência, e que, depois de meditar, via um pássaro branco voando em seu quarto. Ele comentou que agora entendia melhor o que era sentir tristeza com paz.

Marcelo já estava tão magro que simplesmente tocá-lo causava-lhe dor. Já não conseguia mais se alimentar e tinha dificuldade para respirar. Ele pediu que eu fosse visitá-lo com mais freqüência.

Uma noite, sua mãe me telefonou pedindo que eu fosse ao hospital com urgência, pois sentia que seu filho estava pronto para partir. Junto com meu amigo, o irmão de Marcelo e a esposa, cheguei ao hospital em pouco tempo. Mas como já era tarde e estávamos fora do horário de visita, tivemos que insistir muito com o segurança do hospital para que nos deixasse entrar. Finalmente, ele nos concedeu quinze minutos.Quando entramos no quarto, a respiração de Marcelo já estava bem irregular: a expiração era mais longa que a inspiração. Uma amiga sua segurava a máscara de oxigênio em frente à sua boca. Ele estava consciente, mas não podia mais falar. Notei que ele havia me reconhecido por seu olhar e por ter voltado sua a mão em minha direção. Segurei-a, e lhe disse: “Agora o seu sofrimento é só físico; sua mente já não sofre mais. Ela é aquela luz branca e pura no topo de sua cabeça. Sua mente está muito feliz, e tudo à sua volta é muito lindo”. Marcelo girou os olhos para cima e fixou assim o olhar.

Comecei a recitar o mantra do Buddha da Compaixão: OM MANI PEME HUNG. Logo, todos os presentes começaram a recitar junto comigo, muito suavemente. O ambiente foi se tornando calmo, repleto de uma energia sutil, calorosa e suave. Marcelo expirou com força três vezes seguidas e faleceu enquanto eu fazia uma longa prece: a Homenagem às 21 Taras. Essa prece evoca 21 aspectos do arquétipo da sabedoria feminina da mente iluminada, com o objetivo de eliminar interferências negativas. Segundo o Budismo Tântrico, após a morte física, ainda temos o que fazer: podemos ainda cuidar do corpo e da mente sutil.

O budismo nos ensina a ver além das aparências imediatas, pois reconhece a existência dos níveis grosseiro, sutil e muito sutil do corpo, da mente e dos elementos externos e internos. Quando falamos do corpo, por exemplo, consideramos seu nível grosseiro o corpo físico, seu nível sutil, a aura, e seu nível muito sutil, o contínuo mental, isto é, a mente muito sutil que transmigra de uma vida para outra, sustentada por ventos de energia muito sutis. A natureza interna mais essencial da mente muito sutil é pura como cristal, mas nela estão registradas as marcas das intenções com que realizamos nossas ações de corpo, palavra e mente.

Segundo o budismo tântrico, a morte de fato só ocorre quando a mente muito sutil deixa o corpo, o que pode se dar minutos ou até mesmo dias após a parada cardíaca e respiratória. Cada pessoa, devido ao seu karma particular, tem seu momento específico para que a mente muito sutil, a essência de nossa força vital, deixe o corpo físico por uma das nove aberturas do corpo: o ânus, a boca, o canal da urina, os olhos, o umbigo, o nariz, os ouvido, o ponto no meio das sobrancelhas e o topo da cabeça.

O topo da cabeça é a porta mais auspiciosa de saída, pois leva à entrada para um renascimento afortunado, enquanto as aberturas inferiores levam a renascimentos desafortunados. Tocar o corpo de alguém que morreu quando a mente muito sutil está percorrendo-o para deixá-lo faz com que ela saia pelo ponto em que o corpo foi tocado. Por isso, costuma-se dar um puxão de cabelo ou pressionar o topo da cabeça para atrair a mente a sair por essa porta auspiciosa.

O mantra de seis sílabas OM MA NI PE ME HUNG é considerado um outro método potente para garantir que a mente deixe o corpo pelo topo da cabeça. Cada uma das sílabas possui um forte poder energético, capaz de dirigir a mente a um estado elevado.

Coloquei um pouco de creme com pílulas sagradas preparadas por meu mestre, Lama Gangchen Rimpoche, no topo da cabeça de Marcelo. Ao mesmo tempo, puxei seus cabelos para atrair sua mente muito sutil a deixar o corpo através dessa região. Essas pílulas são feitas em Katmandu, de acordo com uma receita de séculos atrás transmitida pela linhagem de Lama Gangchen. Além de conterem ingredientes considerados sagrados, como água de lugares especiais e pó raspado de uma estátua muito antiga, elas são abençoadas por Lama Gangchen Rimpoche através de suas orações.

Com a intenção de transmitir paz a Marcelo, permanecemos alguns minutos em silêncio, todos de mãos dadas. Em voz alta, dediquei toda a energia positiva acumulada em sua vida a todas as pessoas que necessitam de paz ao morrer. Cada um dos presentes também fez sua dedicação.

Quando ainda estávamos concentrados dessa forma, entrou o segurança do hospital para nos avisar que os “quinze minutos” já haviam passado e que precisávamos tirar o carro do estacionamento. Até hoje me pergunto como ele nos achou naquele quarto! Fiquei surpresa com a sincronicidade do tempo que levamos para realizar nossa tarefa de ajudar Marcelo a ir em paz.

No dia seguinte à morte de Marcelo, tive a rara oportunidade de encontrar Lama Zopa Rimpoche, um grande lama tibetano que estava em São Paulo para visitar nosso Centro de Dharma da Paz. Contei-lhe o que havia ocorrido e pedi que rezasse por Marcelo. Ele sorriu e me disse que isso não era mais necessário, pois a sua consciência, guiada pela luz branca já havia sido transferida à Terra Pura, onde não existem mais sofrimentos.

Seis meses depois, a mãe de Marcelo me mostrou uma carta psicografada em uma sessão espírita, com uma mensagem de seu filho. Ele dizia que estava muito bem, em um lugar de muita paz, onde havia muitos pássaros brancos.



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bel
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia.
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