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Quando a dependência é saudável

por Bel Cesar em Espiritualidade
Atualizado em 15/04/2005 13:23:33


Entre as rezas preliminares das práticas meditativas do budismo tibetano estão as Sete Meditações Ilimitadas. Por meio delas, rezamos para que todos os seres tenham felicidade em suas causas, e para que sejam livres do sofrimento e de suas causas. Segundo o mestre budista Lama Gangchen Rinpoche, uma das razões por que devemos fazer todos os dias esta prece é que estamos a todo o momento vivendo graças ao esforço dos outros e, portanto, além de agradecer por esta dedicação, devemos dar algo em troca: a boa energia.

Se reconhecermos a realidade que estamos profundamente ligados uns aos outros, não teremos dificuldade em admitir o quanto dependemos uns dos outros. Neste mesmo instante, por exemplo, apesar de não podemos vê-las, sabemos que dependemos de que muitas pessoas leiam este texto na Internet. Se aprofundarmos esta análise, veremos que esta dependência é interminável, pois a ação de uma pessoa está diretamente ligada à ação de outra.
No entanto, temos preconceitos sobre a palavra dependência, pois ela nos remete à idéia de que iremos perder o controle sobre nossa autonomia.

O conceito de autonomia surgiu apenas no final do século XIX e tornou-se um forte referencial de liberdade para a sociedade ocidental após a Segunda Guerra Mundial, com a expansão dos princípios da democracia.
No entanto, quanto mais negarmos nossa dependência, mais dificuldades teremos em perceber a trama que nos liga uns aos outros. É preciso entender de “nós” para desatá-los!

Quanto mais nos dermos conta do quanto somos dependentes uns dos outros, melhor poderemos reconhecer e lidar com as nossas diferenças frente ao modo como cada um leva a vida: seu ritmo e suas aspirações.

É interessante observar como cada um possui um grau próprio de disponibilidade interna para lidar com as demandas externas. Isto é, algumas pessoas são capazes de se manter ligadas ao mundo exterior por mais tempo que outras.

Fico sempre impressionada ao observar a incansável capacidade de Lama Gangchen Rinpoche para atender às demandas externas. Como um terapeuta ambulante, ele dá atenção a centenas de pessoas que o buscam todos os dias para receber seus conselhos e sabedoria.

Quem está à sua volta pode sentir-se facilmente caótico, pois muitas vezes, quando ele está lhe dizendo algo, é interrompido por outra pessoa ou por uma chamada telefônica. Mas, com o tempo, aprendemos que se aguardarmos em silêncio ele irá retomar a conversa exatamente do ponto onde parou.

Procuro observar o quanto essa interrupção me deixa nervosa, despertando a sensação de que corro o risco de estar perdendo a chance de receber algo importante. Mas, com o passar dos anos, tenho aprendido a relaxar e confiar que sempre receberei seus conselhos quando necessitar.

Estive visitando Lama Gangchen neste último mês. No momento em que estava para me despedir dele, vieram várias perguntas à mente. E comecei a fazê-las. Ele não hesitou em respondê-las, mas logo me disse: “Bel, teremos pela frente a vida toda juntos para conversar sobre tudo que você quiser”. Esta frase teve um efeito balsâmico sobre mim, pois compreendi que podia confiar que receberia a qualquer momento a informação de que necessitasse.

Esta experiência me levou a escrever este texto, pois pude refletir que a base da dependência saudável é construída na confiança de que não seremos abandonados ou sofreremos a dor da falta. E mais: é justamente esta sensação que nos ensina a confiarmos cada vez mais em nossa capacidade de contar com nossos próprios recursos internos.

A dependência saudável nos torna cada vez mais ágeis, mais livres para fluir. Se não quisermos sofrer as conseqüências da dependência negativa, teremos que nos auto-organizar.

Por exemplo, quanto mais organizados formos com as informações de que necessitamos para agilizar nosso cotidiano, mais saudável será nossa dependência com os outros. O simples fato de não ter anotado o telefone de uma pessoa com quem você deseja falar, já o faz depender da disponibilidade de outros lhe darem esta informação quando você necessitar dela. Este fato pode parecer sem muita importância, mas quem já não se pegou perdendo oportunidades importantes simplesmente por não saber o horário e endereço de onde deveria ir?

Quando mais reconhecermos o quanto os outros dependem de nossa atitude organizada para seguir mais facilmente o fluxo dos acontecimentos, mais respeito teremos por eles. Por sua vez, seremos também mais respeitados. Neste sentido, saber pedir ajuda e informar ao outro de suas condições é essencial para convivermos sob uma dependência saudável. Não ajuda dizer ao outro: “Não queria te dar trabalho, por isso tentei fazer tudo sozinho, mas, desculpe, não consegui”. Pode ser tarde demais para reconhecermos que dependemos, sim, uns dos outros!

Podemos avaliar se estamos vivendo sob um fluxo de dependência saudável ou não a partir dos resultados de nossas ações em grupo. Quando uma situação fica empacada é porque a dependência entre as pessoas envolvidas nesta ação está comprometida. Então, é hora de mudar, não adianta insistir!

Muitas vezes, as coisas não vão em frente porque depositamos excessiva confiança nos outros; noutras vezes, ocorre exatamente o contrário: centralizamos as decisões, impedindo os outros de agir.

A dependência saudável é possível na medida em que assumimos a responsabilidade por nós mesmos, ao mesmo tempo em que não nos isolamos dos outros.

Aquele que não assume a responsabilidade por si mesmo está sempre buscando bodes expiatórios para os seus fracassos tornando-se, desta forma, cada vez mais preso a eles. Relacionamentos baseados nesta dependência doentia tornam-se densos e as pessoas envolvidas cada vez mais frágeis.

A dependência saudável existe quando não nos acomodamos com o que parece mais fácil. Por exemplo, abafar nossas emoções ou levar a vida sem expressar nossas ambições em prol de uma aparente condição de estabilidade não nos fará feliz.

Fingir que não existimos não é saudável! No entanto, isso corre muitas vezes com aqueles que estão sucumbidos às regras daqueles que os mantêm financeiramente. A dependência financeira será saudável quando não impedir o outro de realizar seus sonhos e tornar-se responsável por eles!

A dependência saudável surge quando somos capazes de cuidar de nós mesmos. No entanto, a maioria de nós recebeu uma educação contraditória. De um lado, nos foi transmitida a mensagem de que só poderíamos ser nós mesmos a partir do momento em que fôssemos capazes de nos manter financeiramente, e do outro lado, fomos criados para ser dependentes de nossos pais! Desta forma, absorvemos diariamente seus medos frente ao mundo, assim como a imagem de que esses medos são ou não possíveis de ser enfrentados: “Cuidado com fulano”, “Se eu fosse você não me arriscaria”. Cada um recebeu, quando criança, uma dose afetiva de que seria capaz ou não de se auto-responsabilizar por sua vida. Se esta foi ineficiente, nossa tendência será a de recuar frente a cada nova chance de crescer. Ficamos assustados frente à idéia de assumirmos o risco de agir de um modo mais arrojado daquele temeroso de nossos pais.

Quanto mais nossas carências na infância não foram atendidas, mais inseguros nos tornamos quando adultos. Ou seja, quanto mais tivermos vivenciado a experiência de que recebemos o que necessitamos daqueles de quem fomos literalmente dependentes, mais confiança teremos internalizado em nossa capacidade de nos relacionar.

John Bradshaw escreve, em seu livro “Volta ao Lar” (Ed. Rocco): “Quando não podem confiar nas pessoas responsáveis por elas, as crianças desenvolvem um profundo sentimento de desconfiança. O mundo parece um lugar perigoso, hostil e imprevisível. Dessa maneira, precisam estar constantemente em guarda e no controle. Acabam por acreditar que, ‘se eu controlar tudo, ninguém pode me apanhar desprevenido e me ferir’. Surge, então, uma espécie de mania de controle, o vício do controle. A mania do controle cria graves problemas nos relacionamentos. Não é possível a intimidade com uma pessoa que não confia em nós. A intimidade exige a aceitação do companheiro como ele é. Os distúrbios de confiança criam também problemas de excesso de confiança. A pessoa desiste de todo controle e confia ingênua e absurdamente, prendendo-se a outra pessoa e investindo nela um excesso de estima, ou isola-se completamente, construindo muros protetores e intransponíveis”.

Portanto, se nossa noção básica de confiança ficou comprometida pela falta de segurança quando éramos crianças, teremos que reconstruí-la agora por meio de nosso próprio esforço. Mas isso não quer dizer que devemos fazê-lo a sós. Ao contrário, será justamente a vivência de uma relação baseada na dependência saudável que irá nos proporcionar esta autoconfiança que tanto nos faz falta.

Para avaliarmos nossos relacionamentos, precisamos aprender a reconhecer a dinâmica que eles exercem sobre a capacidade de nos responsabilizarmos por nosso equilíbrio interno. Por isso, aqui vai uma dica preciosa: uma relação que nutre a dependência doentia irá nos tornar cada vez mais inibidos, carentes da aprovação alheia. Já uma relação baseada numa dependência saudável está sempre nos estimulando a sermos nós mesmos, isto é, a nos voltarmos para nosso eixo de confiança interior.

O tema do próximo texto será a co-dependência: quando uma pessoa independente suporta e incentiva a dependência do outro.



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bel
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia.
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