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Ser espontâneo diante da morte

por Bel Cesar em Espiritualidade
Atualizado em 30/07/2004 11:02:40


Em geral, apesar de termos a necessidade de nos expressar sem reservas, nos bloqueamos: temos medo de não sermos aceitos como somos. Principalmente diante da morte, as pessoas não costumam dizer o que querem ou pretendem, e as que estão perto delas igualmente não sabem o que dizer ou fazer.

Se um dia eu necessitasse resumir em uma frase o objetivo do trabalho psicoterapêutico, diria que é: “Resgatar a espontaneidade, para gerarmos um afeto genuíno, capaz de expressar o que temos de mais puro em nosso interior”.

Ser espontâneo é ter empatia por si mesmo: um sentimento genuíno de sentir prazer por gerar algo positivo em nosso interior.

O hábito de nos autocriticar e nos desvalorizar desencadeia a perda da espontaneidade. Toda doença começa com a perda da espontaneidade, pois quando nos rejeitamos, paralisamos e cristalizamos algo dentro de nós, que posteriormente irá se manifestar como uma doença crônica.

Chögyam Trungpa escreve em seu livro Shambala (Ed. Cultrix): “Num nível mais sutil, usamos os padrões habituais para esconder a falta de espontaneidade. Quando nos sentimos incapazes, mal-adaptados a uma situação, adotamos um padrão habitual como resposta, para reservar nossa auto-imagem: inventamos desculpas para proteger nossa incapacidade frente às outras pessoas. Nossas respostas emocionais padronizadas são, com freqüência, reflexos de tendências habituais, tanto quanto cansaço mental, inquietude, irritação com as coisas de que não gostamos, além de boa parte dos nossos desejos. Recorremos aos hábitos para nos trancar e nos fortalecer”.

Portanto, o primeiro passo para atender à necessidade de ser espontâneo é liberar-se de qualquer expectativa e relaxar para gerar um ambiente descontraído e autêntico. Frases prontas, perguntas supérfluas geram mais desconforto do que o silêncio autêntico de não saber o que dizer.

A questão é que morreremos como vivemos. Se tivermos passado a vida evitando falar sobre a nossa própria morte ou a dos outros, talvez não saibamos falar sobre ela agora.

Acredito que a necessidade de compreender a morte é semelhante à de uma criança quando descobre a sexualidade: o que ela necessitar saber, pode estar certo que irá buscar os meios de saber.

É fundamental que a pessoa que estiver falecendo sinta empatia por nossa presença, caso contrário, seremos mais um obstáculo para que ela relaxe e expresse seus sentimentos.

Costumo dizer que a habilidade de acompanhar um paciente terminal está em nossa sensibilidade para perceber o momento certo de entrar e sair de cena. Muitas vezes, as pessoas presentes ao redor do paciente possuem necessidades diferentes das dele. A arte está em reconhecer as diferentes sintonias e buscar harmonizá-las gerando espaço para que cada um possa se expressar, de acordo com seu estilo e tempo.

É necessário lembrar, também, que a maior parte das pessoas tem dificuldade de receber cuidados e ajuda. Assim como, não há ninguém completamente pronto para dar todos os cuidados necessários.

Se as pessoas próximas buscarem intimidade por meio do ato de cuidar, podem gerar ainda mais constrangimento. Por isso, o melhor é não criar expectativas quanto aos resultados de nossas tentativas de aproximação. Para exemplificar esta realidade vou contar uma experiência muito significativa que tive com um paciente que sofria, com quase 70 anos, de um câncer bem avançado.

Fui procurada pelos familiares do Sr. Loren para ajudá-lo a ficar mais sereno nas semanas que precediam sua morte. Quando perguntei aos seus parentes, qual assunto ele mais gostava de conversar, me disseram: “Dinheiro, este é o único assunto que ele gosta mesmo de falar”. “Ok, pensei internamente, este vai ser um desafio para mim”.

Em nossos primeiros encontros conversamos muito pouco. Como eu, de fato, não sabia o que falar ficava em silêncio. Muitas vezes me senti inadequada, envergonhada por não saber o que fazer diante de uma situação tão neutra. Então, ora eu buscava me concentrar em visualizações budistas, ora fazia massagens em seus pés ou em suas mãos enquanto escutávamos música clássica. Como ele também não puxava conversa, nem dava sinais para eu ir embora, eu procurava ficar, sempre esticando um pouco mais o tempo ao seu lado. Quando sentia que devia ir embora, perguntava simplesmente se poderia voltar e visitá-lo e ele dizia que sim.

O Sr. Loren continuava irritado, ansioso. Até o dia que tive a excelente idéia de colocar um CD com canções de Ninar hebraicas. Num primeiro instante achei que ele estranharia, podendo se sentir infantilizado. Mas a intuição é sempre sábia: o Sr. Loren relaxou e adormeceu imediatamente. Ao sair, resolvi deixar o CD tocando.

Poucos dias depois, fui chamada em caráter de urgência. Quando cheguei à sua casa, ele havia acabado de falecer. O CD das canções de Ninar estava tocando. Foi quando uma grande amiga sua disse-me: “Estas canções eram as mesmas que a sua mãe lhe cantava quando ele era pequeno. Ela faleceu quando ele tinha cinco anos. Semana passada ele me disse que aceitava morrer para poder encontrar com sua mãe novamente. Foi quando você trouxe o CD, e ele pedia para não parar de tocá-lo”.

Desta forma, o Sr. Loren pôde despertar a memória da energia de bondade fundamental de sua mãe e encontrar confiança de soltar-se desta vida. A serenidade que surge quando nos reconectamos com o amor.



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bel
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia.
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