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Um conto sobre amar e voar

por Maria Guida em Espiritualidade
Atualizado em 08/12/2003 11:20:04


Às vezes me pergunto se esta é a maneira certa de viver.
Um sonho, dentro de outro sonho, sonhado por alguém que não sabe que sonha.
Seja como for, aqui estou eu, perfeitamente só.

Céu e estrelas são meus mais constantes companheiros nesse pequeno mundo que gira sobre si mesmo, no espaço infinito, entre os dedos de Deus. São eles, os últimos seres que vejo antes de adormecer todas as noites. Durmo de óculos, com a janela aberta, porque sem tê-los à vista eu não saberia como continuar. Alguém deveria estar comigo, e se não está, não há como evitar que partes de mim fiquem desapontadas.

Antes que algum de vocês comece a sentir pena, afirmo que não sou infeliz. Apenas, de quando em vez, uma certa tristeza aparece em meu olhar.
Depois que meus olhos se fecham, meu coração tende a desacelerar. Então flutuo por entre pequenas luzes faiscantes, multicores, como quem bóia num lago calmo, envolto na luz prateada de um eterno e muito claro luar. Boiando assim, ao sabor de invisíveis correntes, encalho em praias com águas cor-de-rosa, como tang sabor morango. Seres bem bonitos me estendem suas mãozinhas transparentes. Seus rostos têm expressões de boas vindas.
Caminho com eles por uns campos de relva baixa e espessa, salpicados de florzinhas miúdas.
Sei lá porque, nesse lugar, todo mundo veste túnicas rústicas, com listas largas em branco, cor-de-rosa e azul-claro. As roupas leves esvoaçam ao vento.
Meus companheiros não falam, mas comunicam seus pensamentos e sentimentos numa algaravia telepática misturada com gestos e olhares.
Quando um deles quer me dizer algo importante, toca meu rosto com a ponta do dedo indicador, segura de leve a minha mão e me olha bem no fundo dos olhos.
Uma das vezes que um deles fez isso, grossas lágrimas de alegria rolaram pelo meu rosto. Acordei chorando.

Também freqüento alguns lugares solenes. Vastas salas, de contornos arredondados, onde o chão é continuo com as paredes, como cavernas, esculpidas em pedra cor-de-rosa. Ao contrário das cavernas, elas têm amplas sacadas, limitadas por grades lindas, na mesma pedra, trabalhada em filigranas.
Fico nessas salas sentada sozinha por longo tempo, e enquanto estou ali, muitas coisas novas se insinuam em minha mente. Coisas que eu não sabia, não fazia idéia. É como se a sala toda fosse um enorme walkman, e a informação passasse para mim, não por algum fone de ouvido, mas pela pele, diretamente para cada célula, ou átomo do meu ser.
Eu fico ali, muito atenta e concentrada, até que de repente, tudo aquilo vai sumindo e num solavanco estou de volta, ao velho colchão e edredon.

Às vezes corro por longos corredores brancos, e sinto que atrás de mim, muitos outros como eu correm também. Um dia desses, nessa corrida louca, eu caí, e vazei através do chão, direto para o meu quarto. A brusca mudança de perspectiva fez com que eu me desentendesse toda. Levei uns bons minutos para me recuperar. Onde eu estava? Quem eu era?
Nesses retornos repentinos, às vezes meu coração explode em louca taquicardia. Outras vezes, fico gelada e não consigo me mover.
Um dia, até, desperta pelo insistente som da campainha, pulei da cama, num único impulso, para me estatelar no chão. Minhas pernas não funcionavam direito e foi um custo conseguir me entender com elas.
Suspeito que, como essas, muitas outras coisas aconteceçam quando eu durmo. Acho que esqueço quase tudo, quando acordo.
Se me olho no espelho, sempre me surpreendo com o que vejo. O que é essa luz que rodopia ao meu redor, lilás e muito líquida, como se fosse água, e que está sempre buscando um cântaro onde se atirar?
E onde está o cântaro que poderia finalmente, me dar algum tipo de forma?
Não sei. Recuso-me a insistir em perguntar.
Há muito tempo, acatei os conselhos do I Ching, e decidi tentar amar a todos os seres que cruzam meu caminho, como se fosse a Ele. E tudo o que eu tinha guardado para lhe oferecer, caso um dia ele surgisse de repente, tenho distribuído, me perguntando muitas vezes, se restará algo, quando, ou se, Ele finalmente chegar.

Hoje, parece que amo muito mais ao Amor do que a Ele. E francamente já não me importa, se nós teremos mesmo alguma chance de nos encontrar, porque descobri que de alguma forma estranha estamos unidos muito mais do que aqueles que O vêem todos os dias, indiferentes à grande alegria que é compartilhar com Ele o mesmo ar.
O Amor é uma árvore que cresce sobre a montanha. Nasce tão frágil, mas, se não morre logo, adapta-se a ventos a tempestades. A gente pode confiar no Amor e nele se apoiar, quando o resto nos faltar.
Ele sabe disso, lá onde está sentado agora, adormecido, naquela velha poltrona, diante daquela janela aberta, desse lugar que eu não sei aonde é.
Na semi-obscuridade, quase posso tocar sua pele branca, seus ralos cabelos em desalinho, os óculos pendendo das mãos.
Lia um pequeno volume de bolso em inglês quando adormeceu. Um livro que ele comprou numa pequena loja de usados, no centro da cidade.
Aproveito o pouco tempo que tenho para verificar se ele está bem, se não está doente. Posso sentir as ondas de energia vital fluindo dentro dele em harmonia. Uma luz tranquila sai pelas pontas dos seus dedos, explodindo lentamente, em forma de pequenas estrelas.
Ele sente minha presença. Abre os olhos escuros, coloca os óculos, olha para mim.
Não diz nada, apenas me mostra seu sorriso cético. Pega minha mão, me puxa para perto de si e me abraça.
E como aquele menino que encontra sua mãe, na última cena do filme “O Império do Sol”, apoio minha cabeça sobre seu ombro, fecho os olhos, e posso, afinal, descansar.
Aquele abraço é o meu lugar favorito, minha pátria, meu refúgio.

Ali, estou e sempre estarei segura.
Simplesmente em paz.



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