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Reflexões sobre `O Feminino´ - Parte 4

por Flávio Gikovate em Psicologia
Atualizado em 18/07/2008 16:35:00


3. Mais uma diferença sexual: ausência de período refratário

Não aprendemos a lidar com nossas diferenças e nem temos sido treinados para isso, apesar de todo o discurso oficial que nos diz para respeitarmos os que não pensam como nós. A verdade é que tendemos a não dar crédito àquelas pessoas que concluíram de modo diverso do nosso a respeito de qualquer tema. Naqueles mais polêmicos e sérios, como política e religião, por exemplo. O fato é que nos irritamos muito quando nos deparamos com alguém que tem opinião divergente. A diferença de ponto de vista é vivenciada como ofensa pessoal, mormente quando acontece com pessoas que nos são caras do ponto de vista sentimental. É como se nos sentíssemos abandonados, traídos. Gostamos que pensem do mesmo modo que pensamos porque nos sentimos aconchegados, menos solitários nesse mundo. Detestamos tudo o que nos lembra da nossa condição de desamparados, sozinhos e insignificantes.

Pensando um pouco mais profundamente, é evidente que as diferenças de opinião têm que existir. Não há dois cérebros idênticos, a não ser nos casos de gêmeos univitelinos, além do que cada um esteve submetido a experiências peculiares, sobre as quais refletiu e ponderou de modo próprio. A unicidade e a solidão que daí derivam são partes essenciais de nossa condição, quer suportemos bem esse fato, quer não - nossa condição é de "solidão radical", como disse Ortega y Gasset. O contrário é que é verdadeiro: deveríamos nos surpreender agradavelmente quando nos deparamos com alguém que pensa de modo parecido ao nosso. Tais pessoas, que são as que servem para ser nossos amigos e que deveriam ser também nossos parceiros sentimentais, são tanto mais raras quanto mais sofisticado for nosso aparelho psíquico; assim, pessoas mais simples costumam ter maior facilidade para encontrar outras com quem gostem de conversar. O que está por trás da nossa intolerância para as diferenças de opinião é, insisto mais uma vez, a incapacidade que temos de nos aceitarmos como seres únicos e solitários. Queremos nos realçar, pois isso faz bem à nossa vaidade - importante ingrediente de nosso erotismo relacionado com forte prazer exibicionista. Gostamos, portanto, de ser únicos, mas não suportamos nos sentir solitários, de modo que desejamos nos sobressair dentro de contextos nos quais os outros estão presentes e compartilham de interesses muito próximos. É mais fácil, sob o aspecto psicológico, se destacar por possuir um relógio que todos querem ter do que ter pontos de vista discrepantes. O relógio nos faz ídolo dos que sonham com ele, ao passo que a idéia original nos faz sentir solidão, tende a afastar as pessoas de nós.

Vejamos como isso se torna muito complicado e de solução difícil quando estamos estudando o relacionamento íntimo. Como não podemos suportar bem a solidão tendemos a nos acoplar, formando pares. O amor existe, como sentimento gratificante derivado de uma união estável, justamente porque suportamos mal o estar só em decorrência de nos sentirmos incompletos em nós mesmos; é como se algo estivesse nos faltando e que só será preenchido pela presença constante de uma outra pessoa muito especial. Assim, mesmo na fase adulta da vida, continuamos a ter interesse em estabelecer um elo similar ao que tínhamos com nossa mãe. Precisamos do aconchego que deriva de uma aliança forte, rica em ingredientes infantis. Quase todos nós precisamos desse "colinho" qualquer que seja nossa idade. E os que podem prescindir dele ainda assim gostam muito dessa situação; buscam-na com menos desespero porque podem ficar só; contudo, buscam-na; não o precisam, mas o desejam.

Vimos, no segmento anterior, que homens e mulheres rivalizam e estão em permanente luta pelo poder em virtude da mal elaborada diferença da importância da visão no despertar do desejo sexual. E são esses mesmos indivíduos, quase sempre em pé de guerra, os que terão que se aconchegar e assim atenuar a dolorosa sensação de desamparo presente neles. Terão que ser, ao mesmo tempo, rivais e protetores um do outro. Não é à toa que são tão grandes as desconfianças que costumam se manifestar a todo instante nos relacionamentos íntimos. Como confiar no nosso maior rival?

E mais: como suportar que aquele que é o nosso objeto de aconchego tenha pontos de vista diferentes dos nossos se isto justamente é o que mais nos faz sentir abandonado e sozinho? Não é sem motivo, pois os casais brigam tão dramaticamente por qualquer mínima diferença de opinião. São sérias as razões que levam aqueles que se amam a quererem homogeneizar todos os seus gostos e interesses, suas convicções e seus projetos de vida. Por outro lado, tal empenho não pode deixar de desembocar em atitudes totalitárias, nas quais um dos dois acaba por dominar, ao menos em aparência, o outro. Estabelecem-se, assim, as freqüentes relações que E. Fromm chamava de sadomasoquistas. Ao mesmo tempo, e se levarmos em conta que não existem dois cérebros iguais e que as experiências de vida são únicas, como poderemos sustentar a hipótese de homens e mulheres serem e pensarem da mesma forma?

Nos perdemos nos meandros das nossas próprias contradições, sendo que muitas das precárias reflexões que comumente fazemos derivam justamente de algum ingrediente emocional mal elaborado. Como não suportamos nossa condição de solitários, gostamos de supor que o outro sente e pensa de modo similar ao nosso. Não podemos deixar de pensar assim porque nossa emoção o pede. Ao mesmo tempo, os fatos nos irritam a todo instante porque nos provam o contrário ("Minha mulher, ao menos ela, terá que pensar como eu, sentir a vida como eu, ter sensações psicológicas similares às minhas, viver sua sensualidade de modo idêntico ao meu". "Se o meu marido dá sinais de interesse pelo "traseiro" daquela outra, já fico irritada, pois não fico olhando o corpo dos outros homens". Estes são alguns exemplos do que acontece no cotidiano de quase todos os casais, sempre em virtude da tentativa de homogeneizar pensamentos).

Na realidade, não podem existir dois cérebros pensando do mesmo modo o tempo todo; isso não acontece nem mesmo entre gêmeos idênticos, pois cada um acaba por concluir de forma peculiar sobre os acontecimentos que assolaram a ambos; ou então esteve submetido a condições únicas, não idênticas às do irmão - por exemplo, um dos dois contrai uma doença do tipo hepatite, que exige longa recuperação, e pronto, já aconteceu de terem tido uma vivência importante que os diferencia. Ora, o que dizer de um homem e uma mulher que, no mínimo, têm no seu instinto sexual algumas diferenças que fazem com que suas histórias de vida sejam não só diferentes como percorram territórios antagônicos? Como supor que um homem, que tem o desejo ativo visual e se sente frustrado pela não-correspondência, possa ter uma subjetividade idêntica à de uma mulher, que é objeto do desejo masculino e que se sente gratificada e enlevada por isso? Apenas por força dessa diferença, penso que já seria impossível qualquer conjectura a respeito da igualdade entre os sexos. Igualdade de direitos e de responsabilidades é claro que deve existir, mas não é sob essa ótica que estão sendo formuladas essas reflexões. Além do mais, nossa ânsia pela igualdade se origina mesmo é na nossa incapacidade de suportar a solidão e não em uma ideologia que tenha se mostrado convincente à nossa razão.

Nos irritamos brutalmente com as diferenças entre as pessoas, tentamos equalizar nossa subjetividade com a da nossa mulher e vice-versa, mas nada disso adianta: lá estão novamente as irritantes diferenças na maneira de ser e de sentir que acabam por se refletir na forma com que cada um fala. Não podemos sequer saber se as palavras, usadas por pessoas diferentes, correspondem, no íntimo delas, a sentimentos similares. De fato, a mente alheia é, e sempre será, um mistério para cada um de nós.
A psicologia é a ciência que estuda, entre outras coisas, os modos de tentarmos construir pontes entre essas ilhas solitárias! Seus conceitos sempre terão que ser usados com enormes reservas, justamente em virtude das dificuldades que encontramos ao queremos entender o que se passa dentro do outro. Gostamos de qualquer concepção ou ideologia que nos diga que somos todos iguais - e contra elas nossa vaidade imediatamente irá se insurgir, pois ao mesmo tempo odiamos ser iguais aos outros -, mas somos todos diferentes; e mais, esta diferença se exalta quando falamos de um homem e de uma mulher.

Se os sexos já se distinguem pela diferença, já descrita, relacionada com a importância da visão no desencadear dos processos eróticos, mais complicada ainda fica a questão quando levamos em conta o fato de que existe uma outra diferença essencial na nossa fisiologia sexual: o homem experimenta um período refratário após a ejaculação, o qual inexiste na mulher; tanto é assim que ela pode continuar trocando carícias eróticas indefinidamente, sem que isso se torne repulsivo, doloroso ou desagradável. Tal diferença é, como regra, acatada na vida prática e no cotidiano dos casais. Assim sendo, sempre que o prazer não é alcançado simultaneamente - o que é o mais comum, aliás a idéia de que as descargas teriam que acontecer ao mesmo tempo já deve ter se originado no anseio de atenuar a solidão e de uma tentativa de impor a igualdade -, a preferência é dada à mulher, não por cavalheirismo, mas porque o homem não costuma ter condições "técnicas" para continuar o ato sexual depois da ejaculação.

Em outros momentos, porém, a diferença volta a ser vivenciada como grave ofensa pessoal. A questão do orgasmo feminino, à qual voltaremos mais adiante, tem tendido a se transformar em ponto de honra para os homens, que insistem em imaginá-lo como algo equivalente à sua própria ejaculação. Será que é assim mesmo? Na realidade, não temos como saber exatamente o que sentem as pessoas do sexo oposto no momento preciso da descarga fisiológica que lhe é tão característica. A virilidade e a auto-estima sexual dos homens têm estado associadas à competência, que eles têm sido estimulados a desenvolver, para conduzirem suas parceiras ao nível de excitação e descarga adequado. Como saber se a mulher está mesmo tendo um orgasmo ou se está fingindo? Como saber se é verdade ou mentira algo que diz respeito a um fenômeno que não temos meios de conhecer "por dentro"? Como confiar no sexo oposto, nosso rival tradicional? Como saber se a mulher está mesmo "se entregando" a um homem ou apenas fingindo fazê-lo para, com isso, ter mais poderes sobre ele?

A resposta a tais perguntas é muito simples: não temos meios para saber exatamente o que se passa na mente de outra pessoa, e muito menos se for do sexo oposto. Nós, homens, não sabemos como funciona o psiquismo de uma criatura que não vivencia um período de desinteresse sexual depois de atingir o orgasmo, do mesmo modo que uma mulher não saberá, jamais, o que significa um período refratário. Os sinais derivados da diferença são relativamente evidentes e tendem a ser motivo de brigas: o homem, relaxado e completamente saciado, quer dormir um pouco; a mulher, estimulada pelo clima erótico que nela não se extingue completamente, quer conversar e namorar. Ambos se decepcionam, acusam o parceiro de grosseria ou de incompreensão. As diferenças, sempre que aparecem, nos deixam incomodados, desconcertados e perplexos.

Não é impossível que a percepção, ainda que não muito clara e consciente por parte dos homens, de que a inexistência do período refratário determina uma possibilidade sexual ilimitada para as mulheres seja mais um fator de inveja e de insegurança masculina. Inveja porque a cultura machista sugere que serão tanto mais viris aqueles que forem mais competentes - qualitativa e quantitativamente - e interessados em práticas sexuais. A disputa entre os homens é no sentido de terem mais sucesso com muitas mulheres e de serem capazes de múltiplas experiências sexuais em curto prazo. Ora, isso é coisa muito fácil para as mulheres, uma vez que a ausência do período refratário faz com que não exista limite biológico para a prática sexual feminina - a prostituição feminina, por exemplo, é muito mais fácil de ser exercida do que a masculina.

A insegurança masculina está relacionada com o fato de as mulheres poderem, caso quisessem, ter experiências sexuais com grande facilidade. Não costumam ter dificuldades para encontrar parceiros para esse fim, assim como não lhes falta disponibilidade fisiológica. Aliás, a fantasia masculina é exatamente essa: a de que as mulheres são criaturas que, quando bem envolvidas e seduzidas, certamente acabarão cedendo aos apelos eróticos de um homem interessante e sutil. Eles pensam sobre o assunto tomando por base a eles mesmos e como agiriam se estivessem no lugar delas, o que não tem nada a ver com o que, de fato, acontece com elas. Os homens sentem-se inseguros porque temem que as mulheres façam aquilo que eles fariam se possuíssem as facilidades que reconhecem existir na vida delas. Só que elas não são iguais a eles e, sendo como são, agem como os seus anseios determinam. Esse é mais um fator importantíssimo de desconfiança, inveja e desentendimento entre os sexos.

Não podemos saber o quanto das diferenças no modo de experimentar a vida, o trabalho, as relações afetivas e familiares derivam das nossas diferenças fisiológicas. Não é a mesma coisa ser o que deseja e o que é o desejado, nem ter ou não período refratário depois de um encontro sexual, tampouco ser mãe e ser pai, e assim por diante. Se pudermos aceitar melhor nossa condição de criaturas solitárias, talvez possamos ser mais condescendentes com as diferenças que existem entre as pessoas em geral e entre o homem e a mulher em particular. Possivelmente isso nos ajude muito a entender um pouco mais um do outro ao invés de apenas nos hostilizarmos.

Podemos entender perfeitamente por que as mulheres - quando, com toda a justiça, se insurgiram contra a idéia tradicional da inferioridade de sua condição - aderiram à hipótese da igualdade entre os sexos; elas não podiam se reconhecer como diferentes, pois a solidão lhes incomoda tanto quanto aos homens! Assim, enveredaram por uma rota de pensamento extremamente perigosa e de alto risco: passaram a ter os homens como padrão de referência para o entendimento de sua subjetividade. O equívoco é, a meu ver, muito grave; o denunciei já em 1980 e isso me rendeu péssimos dividendos: fui acusado de "machista", uma vez que "não aceitava" a tese da igualdade entre os sexos. Do meu ponto de vista e das pesquisas que então desenvolvia, eram cada vez mais relevantes os desdobramentos da diferença na intensidade do desejo visual entre os sexos. O curioso é que, na época, a supremacia feminina me parecia indiscutível, o que hoje já não me parece ser tão verdadeiro, de modo que eu era tachado de "machista" justamente quando defendia a tese da superioridade feminina e de que o sexo frágil era o masculino. Hoje compreendo bem o que aconteceu, pois já entendi que as pessoas querem ver a igualdade reinando a qualquer preço. A idéia é necessária, até mesmo se não for verdadeira. Ela interessa mais até mesmo do que a da superioridade feminina, pois essa última não dá um bom destino para a questão da solidão.

Nessa época igualitária, o orgasmo começou a ser visto como tendo características iguais à ejaculação masculina - aliás, passou-se a utilizar o termo "orgasmo" também para os homens, com o que jamais concordei, porque sempre defendi a idéia de que o feminino e o masculino teriam que tentar se definir por si e não usarmos um como referência para o outro. O clitóris passou a ser entendido como uma versão atrofiada do pênis, o que, do ponto de vista embriológico, pode ser verdadeiro, mas não implica que tenhamos que refletir sobre ele tomando por base o que acontece com o pênis. O orgasmo vaginal, entendido por Freud como indício de maturidade feminina, passou a ser malvisto e aquele que se desenvolve no clitóris começou a ser tratado como tendo prioridade e maior importância. Foi a época em que surgiram as revistas femininas recheadas de fotos de homens nus para que as mulheres tivessem deleites visuais iguais aos dos homens; tais revistas foram, de fato, deleite dos homossexuais masculinos, fascinados pelo corpo de homens e portadores do desejo visual típico do gênero.

Assim, o feminismo, apesar de toda a hostilidade e ressentimento que o acompanhavam, tinha em seu contexto, como ingrediente principal, a ideologia igualitária, na qual as mulheres deveriam se espelhar nos homens para melhor se conhecer. O "inimigo" e rival eram também aqueles que deveriam servir de modelo! É difícil imaginar equívoco maior e que só poderia levar a resultados duvidosos e de vida curta. Dele resultou, como importante contribuição, o aspecto relacionado com a igualdade de direitos sociais das mulheres. Contribuiu, junto com os avanços tecnológicos - e mesmo psicológicos que, com todas as dificuldades, andamos fazendo - para a emancipação econômica das mulheres e para uma crescente ocupação, por parte delas, do espaço público. Agora, quanto à compreensão do que acontece no relacionamento entre os sexos e no que se refere ao entendimento que as mulheres gostariam de ter de si mesmas e de sua sexualidade, ainda temos muito a caminhar.



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flavio
Flávio Gikovate é um eterno amigo e colaborador do STUM.
Foi médico psicoterapeuta, pioneiro da terapia sexual no Brasil.
Conheça o Instituto de Psicoterapia de São Paulo.
Faleceu em 13 de outubro de 2016, aos 73 anos em SP.

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