A CONTA
Num mundo onde tanta gente perde, sofre, se frustra, é quase natural que os que estão felizes da vida sintam a presença de uma espada sobre suas cabeças. O que fizeram para merecer tal sorte? A conta virá, certamente.
Como se ser feliz fosse um pecado, eles calculam o que imaginam estar devendo pra sociedade. Quanto pagarei por ter um relacionamento saudável e bacana, onde não há stress? Quanto vão deduzir do que ganhei em amigos, tantos e tão leais? Quando é que vou começar a ser castigado por ter me dado bem na profissão? E esta menina linda que inventou de se apaixonar por mim e encher minha bola dia e noite, quanto ela me custará?
É tanta gente se dando mal que, para aqueles a quem a felicidade sorriu, resta uma culpa tremenda. Ter nascido virado pra lua é considerado quase um defeito de caráter: como alguém ousa não ter problemas neste mundo cão em que vivemos?
Na verdade, problemas todos têm. Todos vezes todos. Se não é no trabalho é na escola, se não é na escola é com a família, se não é na família é no amor, se não é no amor é problema de saúde, se não é saúde, é grana, se não é grana, é a cabeça que anda mal. Alguma coisa sempre perturba, alguma coisa não está 100%.
Não há quem não carregue sua cruz. Mas tem gente que sabe dar a dimensão exata destes problemas que, se formos avaliar, são totalmente normais. Estar gorda, se desentender com o marido, ter uma mãe fiscalizadora, um patrão xarope, um salário meia boca, uma amiga que decepcionou, o que é tudo isso senão parte da vida?
A diferença entre uns e outros é que uns fazem disso uma calamidade e outros levam tudo mais serenamente, economizam-se. Irão se queixar e se atormentar só quando pintar algo realmente sério, que eles aguardam com total certeza da chegada. Porque este "algo realmente sério" será a conta pelos dias amenos, pelos dias ensolarados, pelo astral mantido lá em cima, por sentir-se realizado com pequenas alegrias, por estar satisfeito consigo mesmo, por não fazer drama à toa. Alguma coisa está errada na sociedade quando a gente se sente devedor por estar vivendo bem.
Martha Medeiros, escritora gaúcha
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