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A Morte digital não ocorre naturalmente

Atualizado dia 11/4/2015 2:12:32 PM em Autoconhecimento
por Dr Jô Furlan


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Acabamos de celebrar o dia de finados e há exatos quatro meses, meu pai faleceu. “Seu” Geraldo, mesmo passando dos 80, era uma dessas figuras que adoramos ter por perto, sempre brincando, rindo com as pessoas e as fazendo rir. Que saudades, meu pai, que saudades!
Mas a dor é de quem fica. Tantas vezes tive que ser o responsável por dizer a uma família sobre o falecimento de um pai, mãe, avô ou avó. Nessas horas, sempre pedi a Deus para que essas famílias fossem, de alguma, religiosas, pois a morte, para quem não tem fé, acaba sendo muito mais dolorosa.
Me recordo de meu pai com lágrimas nos olhos dizer: “Deus quis assim, né, meu filho? Mas por que não me levou junto?”. Porque não era sua hora ainda, meu pai, dizia eu a ele.
O mais difícil sempre foi comunicar o óbito de um filho ou filha aos pais. Realmente, não sei quantas vezes ouvi essa frase: “Doutor, Deus não deveria deixar um pai e uma mãe enterrarem um filho. Isso não é natural”.
Quando estava no exército, um general me explicou a diferença básica entre os períodos de guerra e paz. Na guerra, os pais enterram os filhos. Na paz, os filhos enterram os pais.
Mesmo sendo médico e tendo atuado por diversos anos em emergências de grandes hospitais, no Rio e em São Paulo, fui surpreendido pela marcante presença da morte em minha vida recente. Nos últimos 17 meses, eu e minha mulher perdemos nove pessoas da família, sendo três muito próximas (mãe, cunhado e pai, exatamente nessa sequência). Sei que a morte é a coisa mais certa da vida, a única garantia que temos após nosso nascimento. Para morrer, basta estar vivo, já diz o antigo ditado. E como essa tal morte assusta a humanidade.
A questão, contudo, não é quando vamos morrer, mas o que fizemos e estávamos fazendo quando ela chegou. Por ora, vamos deixar a filosofia e focar no tema em questão.
Hoje, muitas pessoas morrem, mas permanecem vivas. Sei que isso é o desejo de boa parte de nós. Nossas realizações, pensamentos, conceitos, nosso legado foi construído, mas não se trata disso. A questão é até mais simples e ao mesmo tempo mais dolorosa. Na atualidade, indivíduos se vão, mas permanecem vivos em redes sociais. Com certa frequência nos deparamos com avisos de aniversários de alguém que só lembramos com auxílio do Facebook, Skype, Linkedln, entre tantos outros. Prontamente mandamos lembranças, parabéns e desejos de uma vida próspera e feliz. Mas, e quando essa pessoa já faleceu? Que mico, que vexame! O pior é a sensação de deslocamento e desinformação, apesar de nunca antes estarmos tão conectados.
Como médico, a morte não deveria me incomodar, afinal, lidamos com ela com muita regularidade. A medicina não é a antítese da morte, mas uma ferramenta para evitá-la temporária, imediata ou brevemente. Por maiores que possam ser os avanços na área, com tecnologia de ponta, mais cedo ou mais tarde iremos morrer. Talvez um termo possa ser usado, não sei se pertinente, mas a melhor metáfora que me vem em mente. Nós negociamos com a morte o tempo todo, às vezes ganhando muito tempo, às vezes nenhum, mas, na média, o suficiente para mais alguns dias, meses, anos e até décadas. Muitas vezes, tive a sensação de ver a morte dizer “não foi dessa vez, mas nos encontramos em breve” ao meu paciente. Quantas vezes tivemos essa sensação quando escapamos ilesos de acidente grave ou de uma situação de risco? Isso tudo dito, venho defender a importância de se realizar a morte digital. Recentemente, conversando com um amigo que perdeu um irmão com pouco mais de 25 anos, deixando esposa e um pequeno filho, soube que sua esposa não queria encerrar o perfil do Facebook de seu marido falecido. Isso faz com que ele viva relembrando de coisas que mais machucam do que trazem alegria. Encerrar a conta, para ela, seria como matá-lo novamente. Esse é o exemplo de como uma decisão pessoal pode ser nociva para familiares e amigos. O luto deve ser vivido, chorado, sentido e superado. A dor da perda é um fato, já o sofrimento, uma opção.

Após a morte da minha mãe, trouxe meu pai para morar comigo. Às vezes, queria pegá-lo no colo para tentar apaziguar sua dor. Fiz sua barba por mais de 5 meses, afinal, ele me dizia que estava nervoso e a mão tremia muito. Eu não discuti, apenas o amei e aceitei. Até o dia que disse: “agora o senhor vai fazer isso sozinho”, ouvindo-o reclamar um pouco. Foi o que aconteceu até a véspera de sua morte.
Me lembro de suas palavras na véspera de sua morte, enquanto eu me preparava para uma viagem para proferir uma palestra, no interior de São Paulo. “Vá lá, meu filho. Toque o coração e mente das pessoas que é o que você sempre quis fazer”. Em pouco tempo, perdi minha amada mãe, minha incondicional apoiadora, e meu cunhado, um grande amigo e parceiro. Junto a mim, minha esposa perdeu uma segunda mãe e grande amiga em seu primeiro dia de férias da sua 2° graduação e seu irmão querido 45 dias depois, no seu primeiro dia de retorno ao curso de arquitetura. Uma pancada sobre a outra. A ordem foi: dia 7 de junho, minha mãe. Após dez dias, minha tia. Outros dez dias se passaram, outra tia. Em uma semana, o tio de minha esposa. Passados 12 dias, perdi meu primo, que iria me ajudar a cuidar do meu pai quando estivesse na fazenda. Ao que, em menos de duas semanas, lá se foi meu cunhado. As tradicionais “piadas de velório” nem faziam mais efeito em nossa família. Essas histórias vou deixar pra outro dia.
Toda essa contextualização é para chegar a esse ponto.
Poucos dias após a morte do Wilson, meu cunhado, assustei-me ao ver a mensagem no Skype dizendo: Wilson está online. Que dor, que desconforto. Nesse momento, lembrei-me que, há pouco de dois anos antes, durante uma entrevista que concedi sobre profissões do futuro, havia dito que, entre tantas opções, como talvez piloto de drone, mencionei o gestor de morte digital. Me recordo que a jornalista achou mórbido, mas aceitou o argumento.
As pessoas precisam de profissionais que as ajudem a terminar, encerrar a vida que elas tinham na web. Redes sociais, e-mails, aplicativos de contato. Sei que alguns deles têm ferramentas para que a família possa tentar fazer isso, mas é muito doloroso e desgastante.

Minha mãe faleceu em um acidente de carro e todo o processo do seguro obrigatório quem fez foi minha esposa. Por mim, deixaria de lado. Mas, pagamos por isso e temos esse direito. Encontrei uma solução para esse problema quando percebi que, apesar da minha dica anos atrás, isso não havia sido iniciado. Então, ajudei a criar a primeira empresa cuja função essencial é ajudar pessoas a realizarem a morte digital de seus entes queridos, com dignidade, respeito e profissionalismo. Surgiu assim o link, tendo por apoio o primeiro obituário online do país, o link Agora ficou mais fácil, mais simples, menos doloroso.
Recentemente, em uma nova entrevista, me perguntaram se isso não seria muito mórbido, ou triste. Respondi que morbidez é o culto da morte e tristeza é continuar vivendo com uma ferida aberta que pode sangrar a qualquer momento. A morte real é inevitável e natural, já a morte digital não ocorre naturalmente. Nossa experiência de vida muitas vezes é avaliada pelas nossas cicatrizes, um sinal de que vivemos, lutamos, sofremos, nos machucamos mas sobrevivemos. A vida só se dá a quem se deu, a quem amou, a quem chorou, a quem sofreu, como dizia o poeta Vinicius de Moraes. Posso também encerrar com um verso da maravilha musical de Almir Sater e Renato Teixeira "Tocando em frente": penso que seguir a vida seja simplesmente conhecer a morte e tocando em frente, como o velho boiadeiro tocando a boiada, eu vou tocando a vida pela longa estrada.... eu vou.

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