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O Cateterismo (contos que ouvi)

Atualizado dia 12/17/2006 7:55:49 PM em Autoconhecimento
por Roberto Perche de Menezes


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Eu havia terminado o curso médico na USP e estava no início da residencia médica. Naquela ocasião, o médico generalista não era o enfoque principal. Os que se formavam lá na faculdade tinham direito automático à especialização. As vagas restantes eram preenchidas por colegas de outras escolas. Tudo era entusiasmo e novidade. Inclusive a chegada de um novo chefe, vindo de país vizinho, fugindo de situação politico-social tensa, embora a nossa não fosse tão diferente.

Além da surpresa, de última hora, da troca de chefia havia também o currículo impressionante do recém-chegado e a necessidade de adaptações: de sua família em nosso país, dele no novo serviço, nós com ele e a barreira, não intransponível, da língua. Mas um fato altamente diferenciador é que ele vinha bem preparado em algo que, no Brasil daquela época, era quase novidade: os cateterismos, procedimento tão corriqueiro nos dias de hoje.

Por isso, quando foi agendado o primeiro cateterismo que o professor ia realizar, a expectativa e curiosidade eram enormes. E quando eu soube que estava escalado para auxilia-lo senti um misto de orgulho e vaga preocupação. Só que a curiosidade ultrapassou os limites do nosso departamento e no dia do exame, quando vi o número de catedráticos que se aglomeravam na pequena sala, minha vaga preocupação se transformou em verdadeiro terror, porque a realidade era simples: havia apenas dois meses que eu iniciara a residência e nunca havia visto um cateterismo. Resumindo: eu não sabia nada!

Mas o exame teria início. Sala lotada. Não havia avental de chumbo suficiente para todos. Os professores-doutores estavam protegidos. Os de escalão inferior se posicionaram atrás deles com as mãos em posição de jogador de futebol na barreira (como se aquilo fosse protege-los da radiação!}. O silêncio só era quebrado pelo pequeno aparelho de ar-condicionado que gemia para manter a sala menos quente.

E o inevitável aconteceu. As coisas começaram a não dar certo. Dava dó ver o técnico-auxiliar, com anos de experiência, com as mãos trêmulas, sem saber se prestava atenção à minha tradução das ordens do professor ou se tentava entender o próprio que, com máscara no rosto, ficava inintelegível.

Eu sentia o suor escorrer em cascata por baixo dos aventais. O humor do professor foi piorando e de repente aconteceu algo inusitado. Alguém gritou com ele dentro da sala: "Professor, não adianta nada o senhor ficar gritando na sala, pois assim o pessoal fica mais nervoso e aí é que não dá nada certo!" Silêncio total na sala. Só se ouvia o ar-condicionado gemer. Eu, particularmente, fiquei ainda mais pasmo quando me dei conta de quem é que tinha gritado com o professor: eu! Eu estava tão nervoso que falei o que estava pensando! Todos olhavam para mim e não havia para onde ir. Aí o professor mostrou porquê era o que era. Parecia ter quatro, seis mãos. Fez quase tudo sózinho: puncionou, canalizou e posicionou o cateter. Só quando pediu o contraste é que participamos: montar a bomba-injetora, eu e o técnico sabíamos.

Aí pudemos perceber, mesmo através da máscara, a expressão de satisfação dele com o resultado. A demonstração aos demais da lesão arterial, os elogios pela qualidade das imagens, diagnóstico feito, exame gravado, exame encerrado. Retirada do cateter, curativo compressivo feito, todos se retirando, aventais sendo despidos, paciente transportado e pessoal da limpeza chegando. E eu fui me retirando também! Pensei comigo: "Depois peço desculpas ao professor. Agora não é a hora. Se necessário venho acompanhado do ex-chefe ou outros professores que me conhecem". Só bastavam mais dois passos quando ouvi lá de dentro: "Roberto!"

Gelei! Nesse momento não ficou mais ninguém na sala. Todos saíram apressados. Passavam por mim, davam um tapinha nas costas e faziam uma expressão do tipo "Não vai doer, não!". Entre girar o corpo e dar três passos até a sala, pensei o seguinte: "Ele tem poder para me mandar embora e vai fazê-lo." Primeiro porque aqueles eram tempos de ditaduras. Segundo, porque havia sido na frente de chefes de departamentos e eles não iriam querer abrir precedente para comportamentos semelhantes.

O problema era o seguinte: o período de inscrições para residências havia se encerrado. Eu teria um ano perdido para procurar vaga em outro local, pois ali se encerrava minha vida na USP. E quando eu apresentasse meu currículo em outra instituição e eles dissessem: "Mas você se formou na USP, por que não está lá?", o que eu iria dizer? Com dois meses de residência mandei o chefe ficar quieto na frente de todo mundo? Excelente credencial! Tudo isso me passou pela cabeça enquanto ia até a sala.

O professor estava de pé, suado, segurando um cateter todo ensanguentado na mão. Tentei começar a falar: "Professor, o senhor me...

"Roberto". Percebi que ele queria falar, iria falar e eu teria que ouvir. Então, me calei e me preparei para ouvir. E ouvi. Ouvi a coisa mais surpreendente e extraordinária que jamais me lembro de ter ouvido: "Roberto, usted me desculpe!"

"Como, professor!?"
"Você me desculpe por ter gritado com usted na frente de todos e ter te posto nervioso."

Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ele estava pedindo desculpas a mim! O chefe que estava há anos-luz de todos nós estava pedindo desculpas a um residentezinho.

"Desculpe, professor, mas se alguém aqui tem que pedir desculpas, sou eu".
"No. No. Eu deveria ter preparado melhor vocês antes do primeiro exame. Chame todos os residentes. Quero ensiná-los agora, para que quando vierem visitantes em nosso departamento, possamos fazer boa figura."

Eu não sabia se ria ou chorava. Se ficava exultante ou me sentia arrasado. Mas saí feito um louco atrás de meus colegas. Era hora de almoço e a maioria almoçava ali mesmo. O restaurante fornecia refeições gratuitas para nós e isso tornava a comida extremamente saborosa. Reuni a maioria e ali, na frente de todos, ele repetiu o pedido de desculpas a mim e ao técnico. E então, passou a ensinar em detalhes a técnica para nós. Enquanto ele falava naquele dia aprendi mais que simplesmente puncionar um vaso.

Naquele dia aprendi a diferença que há entre um chefe e um líder.
Naquele dia aprendi a diferença entre a autoridade que um cargo confere a quem o ocupa e a dignidade que o ocupante pode conferir ao cargo.
Naquele dia aprendi que grandeza de espírito e humildade, frequentemente andam juntas.
Aprendi como é fácil canalizar um vaso e como tem sido difícil, no dia-a-dia, praticar o exemplo que o professor me passou.

Texto revisado por Cris

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