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Pretos e Branco (contos que ouvi)

Atualizado dia 12/26/2006 7:38:23 PM em Autoconhecimento
por Roberto Perche de Menezes


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Naquela época, sábado era o dia da semana de maior movimento na cidade. Era quando o pessoal da roça vinha fazer compras e passear, e a cidade fervilhava de gente. Era o dia em que eu mais trabalhava na farmácia do meu pai.

Dentre o pessoal que vinha dos sítios havia uma mulher que chamava a atenção. Era magra, alta, tinha a pele preta, com o nariz pequeno, a testa proeminente e o cabelo, embora fosse um pouco duro, era liso e comprido. Mas duas coisas me chamavam a atenção: o quanto falava alto e o número de filhos. Impressionante! Devia ser uns nove, todos pequenos, com nariz escorrendo e sujos. Quando eles chegavam à farmácia era meu desespero. Faziam uma sujeira enorme e sobrava para mim limpar o chão de urina e farelo de biscoto de polvilho.

Só um se destacava. Ele era limpo e eu ouvi a mãe dizendo para as outras mulheres: "Esse aqui é raça ruim. Ele não senta no chão com os outros; lá no sítio, quando puxo água do poço, não bebe na mesma caneca que os irmãos e quando vou visitar os doentes na Santa Casa, ele não quer entrar; diz que não quer pegar as doenças". Ora, para mim o certo era ele! Só percebi que minha mãe estava atrás quando ela me disse, baixinho: "Quando um espírito evoluído reencarna num ambiente desses, sofre muito."

Não respondi nada. Naquela idade meu negócio era jogar bola nos campinhos. Tanto que durante anos seguidos meu pedido de Natal sempre foi uma bola de capotão, nº 5. Quem tinha a bola era dono do time. Jogava quem ele deixava. E com a minha bola jogava todo mundo. Alguns raros me criticavam por eu não selecionar quem jogava e eu dizia: "Ganhe uma bola e faça o seu time. Com a minha bola joga todo mundo!" O que eu adorava era jogar. Não importava com quem ou contra quem.

Tanto, que uma vez, já no ginásio, quando vieram me avisar que o Anísio ia treinar um time, que "ia ter até uniforme", corri a me inscrever. "Aparece no sábado à tarde para treinar", disse ele. "Sábado à tarde?! Não dá, eu tenho que fazer entregas." "No meu time, quem não treina não joga".

Que ducha fria! E no sábado, enquanto fazia as entregas vi a meninada treinando. Deu até água na boca. Mas no domingo cedinho estava lá. Se não ia jogar pelo menos assistiria. E vai que sobrava uma boquinha! De repente pensei: "Contra quem eles vão jogar?! De repente..." Quando vi o time adversário vibrei na esperança de poder jogar: era o time da Pretolândia! Nunca um branquela tinha jogado naquele time, mas eu conhecia todos. Conversei com o Baianinho, o Tião Medonho, o João Preto e o Micrica. Todos concordaram em eu jogar. Mas quem decidia era o Álvaro. "Álvaro? E quem é esse?" Me apontaram um escurinho de cabelo quase liso e rosto sério. Embora fosse mais novinho que nós tinha um quê de mais maduro. Moleque, que joga bola, ainda por cima preto e que não tinha apelido, pra mim parecia coisa de outro mundo. Mas o que eu queira era jogar. Expliquei a ele a situação e perguntei: "Posso jogar no time de vocês?"

Ele tentou um meio sorriso. Sorrir parecia ser difícil para ele, mas senti muita simpatia em seu olhar: "Você é filho do dono da farmácia, não é?" "Sou, por isso não pude treinar ontem. Posso jogar no time de vocês?" Ele continuou me olhando, sério: "Sempre admirei, você, filho do dono, limpando a sujeira que os meus irmãos faziam no chão da farmácia." Aí eu o reconheci: era o tal do "espírito evoluído reencarnado" que minha mãe tinha dito. E não é que parecia coisa de outro mundo mesmo? Mas o que eu queria era jogar. "Posso jogar no time de vocês?" "Pode." "Valeu!"

Como o "nosso" time não tinha uniforme, para diferenciarmo-nos do outro jogamos sem camisas. Era até curioso um único branquela correndo junto com um bando de pretinhos. Ganhamos por 3 a 0 e eu fiz dois gols.

Ganhar do time que tinha até uniforme, foi gostoso, mas o gostinho de ter sido o primeiro branco a jogar na Pretolândia, foi muito mais. E depois descobrimos que nunca um branco tinha jogado antes com eles, não porque eles não gostassem ou não quisessem. É que nunca ninguém havia pedido antes. E quando o primeiro pediu, e no caso fui eu, foi recebido de braços abertos.

Hoje, alguns daqueles meninos já são falecidos, a maioria por problemas com o alcoolismo. Mas o gostinho de ter inaugurado uma fraternidade e rompido com um preconceito, me orgulha até hoje.

Quanto ao "Vinho" (sabia que ele tinha um apelido!), nunca mais vi ou ouvi falar. Até parece coisa de outro mundo mesmo. Mas nisso vou pensar mais tarde. A fraternidade e a amizade dispensam cores.

Texto revisado por Cris

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