O Preconceito
Atualizado dia 4/6/2008 8:41:44 PM em Autoconhecimentopor Marcos Spagnuolo Souza
Não é do corpo que nasce a repulsa ou preconceito; ela chega ao corpo pela mente; é um estímulo do ego, mas tão profundo e total que chega ao plano fisiológico. Esse estímulo não é provocado pela experiência. O preconceito é uma escolha livre e total de si mesmo, uma atitude global que alguém adota sendo uma visão de mundo.
O preconceito é uma visão de mundo que adota a impermeabilidade. O homem racional busca angustiosamente a verdade, está ciente de que seus raciocínios são apenas prováveis, de que outras considerações vão colocá-los em dúvida; nunca sabe muito bem para onde está indo; é aberto, pode até ser tomado por hesitante. Mas há pessoas que são atraídas pela constância das pedras. Querem ser maciças e impenetráveis, não querem mudar – pois aonde a mudança as levaria? Trata-se de um medo primordial de si mesmas e um medo da verdade. E o que as assusta não é o teor da verdade, do qual, aliás, nem desconfiam, mas sim a forma do verdadeiro, esse objeto de contornos indefinidos. É como se a própria existência dessas pessoas estivesse permanentemente em suspenso. O preconceituoso quer existir aqui e agora. Não quer outras opiniões, ele tem medo de raciocinar, desejam um modo de vida no qual o raciocínio e a indagação tenham papel apenas subalterno, no qual só se busque o que já se descobriu, o que nunca se transforma. O preconceituoso escolheu o ódio porque o ódio é uma fé; antes de tudo, preferiu desvalorizar todo tipo de permeabilidade.
A exterioridade o dispensa de procurar sua personalidade dentro de si mesmo; prefere estar todo no exterior, nunca se volta para si mesmo, é apenas o medo que o provoca, ele foge à consciência íntima de si mesmo.
O preconceituoso foge à responsabilidade como foge a sua própria consciência; e ao escolher para sua pessoa a constância mineral, escolhe para sua moral uma escala de valores petrificados. Nesse sentido, o preconceituoso é uma forma dissimulada daquilo que se denomina a luta do cidadão contra o poder. Ele somente quer um poder forte que o poupe da esmagadora responsabilidade de pensar por si mesmo, sendo um fascista. O poder fraco permite que o outro tenha opinião divergente. Diz que o poder fraco leva a indisciplina por amor à desobediência.
Assim, todo preconceito é originado primordialmente de um maniqueísmo; explica o curso do mundo mediante a luta do princípio do Bem contra o princípio do Mal. Entre esses dois, não há acordo possível: é preciso que um deles triunfe e que o outro seja aniquilado. O preconceituoso não recorre ao maniqueísmo como a um princípio secundário de explicação – é a opção original pelo maniqueísmo que explica e condiciona o preconceituoso.
Para o maniqueísta preconceituoso a ênfase está na destruição. Não se trata de um conflito de interesses, mas dos danos que um poder maligno causa à sociedade. Portanto, o Bem consiste antes de qualquer coisa em destruir o Mal. Sob o azedume do preconceito, se oculta essa crença otimista de que, tão logo o Mal seja rechaçado, a harmonia irá restabelecer-se por si mesma. Assim, a tarefa do preconceituoso é exclusivamente negativa: não se trata de construir uma sociedade, mas apenas de purificar a já existente tendo por base o Bem.
Paladino do Bem, o preconceito é uma luta sagrada. Dessa forma, a luta se trava no plano religioso, e o final do combate só pode ser uma destruição sagrada. O preconceituoso é incapaz de elaborar um plano construtivo; sua ação não pode situar-se no nível da técnica e permanece no terreno da paixão. Ele prefere uma explosão de raiva a um empreendimento que demande tempo e fôlego. O preconceituoso canaliza os seus impulsos para a destruição do outro; uma turba de preconceituosos se dará por satisfeita quando tiver massacrado o outro.
Trata-se apenas de suprimir o Mal, pois o Bem já está dado. Não há nenhuma necessidade de procurá-lo angustiosamente, de inventá-lo, de questioná-lo pacientemente, de comprová-lo pela ação, de verificar suas conseqüências e de assumir enfim as responsabilidades da escolha ética que fizemos. Não é por acaso que as grandes fúrias preconceituosas encobrem um otimismo: o preconceituoso decidiu-se a respeito do Mal para não precisar decidir-se a respeito do Bem. Quanto mais absorvido no combate ao Mal, menos fico tentando a questionar o Bem. Quando o preconceituoso tiver cumprido sua missão de destruidor sagrado, o Paraíso Perdido vai reconstituir-se sozinho. Por ora, o preconceituoso tem tanto trabalho que não lhe sobra tempo para ficar refletindo: está sempre combatendo na linha de frente, e cada uma de suas indignações é um pretexto que o demove de buscar angustiosamente o Bem.
O preconceituoso não possui capacidade de escolher seu Bem e, por medo de ser diferente, deixou que lhe impusessem o Bem de todo mundo, sua ética nunca se baseia na intuição dos valores ou no que Platão denomina Amor; ele se manifesta apenas pelos tabus imperativos mais rigorosos e mais gratuitos.
Lembramos que o preconceito é uma concepção de mundo maniqueísta e primitiva, na qual o ódio ao outro se instala como grande mito explicativo. Já vimos que não se trata de opinião isolada, e sim de uma escolha global que um homem em situação faz de si mesmo e do significado do universo.
Isso significa que o preconceito é uma representação mítica entre a luta do Bem e do Mal e não pode existir em pessoas que transcenderam a concepção dualística. O preconceito evidencia a separação e o isolamento dos homens na comunidade, o conflito de interesses, o fracionamento de paixões; só poderia existir nas coletividades em que existe uma solidariedade bastante franca; é um fenômeno do pluralismo social. Numa sociedade cujos membros são todos solidários porque estão todos engajados na mesma empreitada não haveria lugar para o preconceito. Nenhum ser humano será livre enquanto predominar o preconceito.
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