Carlos Prado o médico dos Andes - Parte III
Atualizado dia 9/5/2007 8:01:37 PM em Autoconhecimentopor Aos Filhos da Terra
Carlos herdou o conhecimento de sua mãe, uma curandeira amauta, natural de Cuzco. Os amauta são sacerdotes-mestres dos mais respeitados no império inca. “Via de regra, um curandeiro se faz assim: ele recebe o saber ancestral de seus pais, mas alguns sinais desde o nascimento e primeiros anos de vida também podem identificar aqueles que assumirão esse papel”; explica Carlos que, particularmente, nasceu de parto podálico, e sobreviveu a ele. Um parto desses no campo significa quase sempre a morte da mãe, da criança, ou de ambos. A vida, portanto, resolveu submetê-lo a provas desde o início. Mas também houve vocação e discernimento próprios, visto que entre dez filhos de mesma mãe feiticeira, Carlos foi o único que resolveu seguir os passos do xamanismo. Por conta disso passou por rituais iniciáticos probatórios e de confirmação; o primeiro deles aos seis anos de idade, um segundo aos doze. Nessa idade, Carlos decidiu buscar sua independência. Pediu autorização à sua mãe e deixou sua casa, partindo para uma extensa peregrinação. Por vinte anos a fio, percorreu a pé toda a região correspondente ao antigo império incaico; enfrentou inúmeros percalços e alcançou terras compreendidas desde o norte Chile até o Equador, conhecendo todo o Peru, Colômbia e Bolívia. Em cada parte manteve contato com os curandeiros locais e, trocando informações, pôde aprender muito.
Um feito extraordinário, a fazer dele um dos raros xamãs que têm uma visão clara e abrangente daquilo que poderíamos chamar de um denominador comum de toda a medicina tradicional andina, capaz, portanto, de um dia cumprir o propósito de sistematizar numa obra esse saber milenar. Perguntei-lhe como seria seu livro, o que representaria sua edição para a tradição andina, que se perpetua eminentemente sob forma oral. Carlos, raciocínio rápido, respondeu-me:
“Por certo não será um livro romântico como as obras de Carlos Castañeda. Sempre me pergunto como não ficariam suas histórias se tivessem sido contadas não por ele, mas por Don Juan. Não quero dizer com isso que os livros de Castañeda não sejam válidos; eles o são, mas invariavelmente são sociólogos ou antropólogos que escrevem sobre nossa gente, como se fôssemos peças de museu. Em meu livro estarei expondo a realidade da cosmovisão andina, o uso ritualístico da coca e os princípios de nossa medicina tradicional herbária, mineral e animal segundo seu autêntico ponto de vista. Por certo há coisas que não poderão ser ditas, que devem ser guardadas por tradição familiar, e desde que comecei o trabalho tenho recebido algumas críticas por parte de outros curandeiros que imaginam que um livro possa estar traindo nossa cultura, cujo caráter é de nunca haver escrito nada. A estes digo que vivemos numa sociedade que sofre mudanças radicais neste final de milênio; se não houver quem um dia sistematize nosso conhecimento médico, como o fizeram os chineses na Antigüidade, continuamos em risco iminente de desaparecimento por conta das dificuldades que hoje se interpõem à tradição exclusivamente oral do saber. Não se trata de profanar aquilo que é sagrado, mas de criar meios eficientes para que nossa cultura milenar se perpetue”.
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