Profilaxia contra o Utilitarismo

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Autor Daniel Ferreira Gambera

Assunto Espiritualidade
Atualizado em 11/15/2025 2:44:42 PM


Uma das ingenuidades que é preciso levar em conta está na prevalência do utilitarismo, que se tornou uma das correntes éticas mais influentes do pensamento moderno. Ao propor que o valor moral de uma ação deve ser medido pelas suas consequências - isto é, pelo quanto ela aumenta o bem-estar ou reduz o sofrimento coletivo - o utilitarismo oferece uma lógica aparentemente simples: maximizar a felicidade do maior número de pessoas.

Sem nos darmos conta, seus pressupostos são veiculados em filmes, noticiários e na educação como se fossem verdades incontestáveis. Essa corrente ética, mesmo sem ser explicitamente nomeada, permeia grande parte da cultura contemporânea, aparecendo em narrativas que exaltam resultados finais, sucesso mensurável e benefícios para a maioria. O problema está justamente na forma como esses pressupostos são transmitidos: como evidências óbvias, sem espaço para crítica. Essa naturalização reforça a ingenuidade de acreditar que o utilitarismo resolve dilemas morais complexos.

O dilema do trem é uma das metáforas mais recorrentes na ética aplicada e aparece com frequência em debates jornalísticos, acadêmicos e políticos. A situação é simples na formulação, mas complexa em suas implicações: um trem desgovernado está prestes a atropelar cinco pessoas. O agente moral tem a possibilidade de desviá-lo para outro trilho, onde apenas uma pessoa será atingida. A questão central é: seria legítimo sacrificar uma vida para salvar cinco?

Esse dilema é utilizado como exemplo paradigmático do raciocínio utilitarista, pois coloca em evidência a lógica de maximização do bem-estar coletivo. A escolha de desviar o trem, nesse raciocínio, seria justificada pelo saldo positivo - menos sofrimento total, mais vidas preservadas. No entanto, ao mesmo tempo, o dilema expõe as fragilidades dessa lógica: ele reduz vidas humanas a números e ignora a singularidade da dignidade de cada pessoa.

Ao privilegiar apenas os resultados finais, corre-se o risco de legitimar meios questionáveis, desde que conduzam a um fim considerado benéfico. Nesse sentido, o utilitarismo pode ser visto como uma versão sofisticada da máxima "os fins justificam os meios". Essa lógica abre espaço para manipulações: práticas desleais ou injustas podem ser justificadas sob o argumento de que produzem um bem maior. Sem consciência crítica, a ética se reduz a cálculos de custo-benefício, e valores mais profundos - como justiça, dignidade ou integridade - são sacrificados em nome de uma suposta utilidade coletiva.

As maiores atrocidades do século foram cometidas em nome do "bem de todos". Essa constatação revela uma contradição profunda: discursos que apelam ao coletivo ou ao suposto "bem comum" serviram como justificativa para práticas que, na realidade, violaram valores fundamentais. Regimes autoritários, guerras, perseguições e políticas de extermínio foram legitimados sob a retórica de proteger a maioria. Esse paradoxo mostra o risco de uma ética vivida de forma ingênua, especialmente quando reduzida ao cálculo utilitarista das consequências.

Por isso, a profilaxia da perspectiva de valores insiste que não basta olhar para os fins: é preciso proteger o processo e os meios. O verdadeiro bem não pode nascer de práticas que negam a dignidade, a liberdade ou a integridade humana. Caso contrário, o "bem de todos" se transforma em uma abstração perigosa, usada para justificar abusos que corroem o próprio sentido de humanidade.

Uma das falhas fundamentais do utilitarismo é a suposição de que seja possível determinar com clareza o que constitui um bem maior e, além disso, que esse bem possa ser quantificado de maneira objetiva. Ele parte da ideia de que é possível medir o benefício ou o sofrimento das pessoas como se fossem grandezas comparáveis. No entanto, a experiência humana não é homogênea, e os valores que orientam o que chamamos de "bem" variam enormemente entre indivíduos, culturas e contextos.

Ainda mais problemática é a ideia de que esses graus de benefício ou sofrimento possam ser intercambiáveis. O cálculo utilitarista sugere que seria legítimo trocar o sofrimento de uma pessoa pelo bem-estar de outras duas. Essa lógica ignora a singularidade da dor e da dignidade de cada indivíduo. O sofrimento não é uma moeda que possa ser compensada pelo prazer de outros, porque cada experiência é única e irredutível.

Esse raciocínio abre espaço para justificativas perigosas: pode-se aceitar que alguns sejam sacrificados em nome de um suposto bem maior, desde que o saldo final pareça positivo. Mas o que garante que esse "saldo" corresponde a um bem legítimo? O risco é transformar a ética em um cálculo frio, onde vidas e experiências humanas são reduzidas a números, e a dignidade individual é relativizada em nome de uma abstração coletiva.

Outro problema é que o utilitarismo parte do princípio de que a razão humana é muito mais perfeita do que realmente é. Ele pressupõe que somos capazes de avaliar com clareza todas as consequências de nossas ações e de calcular, quase matematicamente, o saldo entre benefícios e prejuízos coletivos. Na prática, essa suposição se mostra ilusória.

Raramente temos plena consciência dos efeitos não intencionados de nossas escolhas. Muitas vezes, decisões tomadas com a intenção de gerar benefícios acabam produzindo consequências inesperadas, que podem ser negativas ou até mesmo contrárias ao objetivo inicial. Além disso, nossa razão não é neutra nem totalmente confiável. Somos atravessados por viéses cognitivos - atalhos mentais que distorcem nossa percepção e julgamento. Esses viéses fazem com que nossas decisões sejam influenciadas por desejos, preconceitos ou ilusões de controle. Assim, o cálculo utilitarista, que deveria ser objetivo, frequentemente se torna uma expressão subjetiva dos limites e fragilidades humanas.

Outra crítica é acreditar que alguém, mesmo que possua toda a informação e o raciocínio perfeito, teria o direito de decidir o que seja melhor para todos. Essa suposição concentra a legitimidade da decisão em um ponto único ou em um grupo reduzido de pessoas, como se fosse possível que uma mente ou coletivo tivesse autoridade para determinar o bem comum. Isso ignora a pluralidade de valores e abre espaço para práticas autoritárias, justificando intervenções que sacrificam indivíduos em nome de um suposto bem maior.

Também é ingênuo acreditar que, quando utilizado democraticamente, pode-se decidir tudo sobre a vida de outra pessoa. Mesmo em sistemas democráticos, o escopo da decisão coletiva não pode invadir o espaço da autonomia individual sem se tornar antiético. A democracia pode legislar sobre regras comuns e organização coletiva, mas não tem autoridade moral para determinar escolhas que pertencem exclusivamente à esfera pessoal. Caso contrário, transforma-se em tirania da maioria.

Outro problema fatal do utilitarismo é que ele desumaniza a existência. Ao tratar pessoas como "unidades de bem-estar" - fontes de prazer ou dor a serem otimizadas - elimina o que faz alguém ser uma pessoa: sua história, seus projetos, sua liberdade de dar sentido à própria vida. Uma mãe que passa a noite acordada cuidando de um filho doente não o faz por cálculo de utilidade. Um artista que pinta por décadas sem reconhecimento não busca saldo positivo. Um ativista que morre por uma causa não quer "o maior bem para o maior número" - quer fidelidade a um valor que transcende o cálculo.

O utilitarismo não consegue explicar por que alguém escolheria sofrer por amor, por honra ou por verdade. Do ponto de vista utilitarista, tais escolhas são irracionais, já que não maximizam prazer nem reduzem sofrimento. No entanto, são justamente essas escolhas que revelam a profundidade da condição humana. Elas mostram que a vida não se resume a cálculos de utilidade, mas é marcada por valores que transcendem qualquer lógica de otimização.

Em última instância, o utilitarismo não apenas falha em medir o bem: ele falha em compreender o que significa ser humano. Ser humano é poder escolher sofrer por aquilo que se ama, por aquilo que se considera justo ou verdadeiro. É essa capacidade de transcender o cálculo que dá à vida sua profundidade e sentido. Reduzir a existência a uma equação de prazer e dor é desumanizá-la, porque ignora justamente aquilo que nos torna pessoas: nossa história, nossos projetos e nossa liberdade de dar significado à própria vida.


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