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Resiliência

Atualizado dia 3/3/2013 11:51:45 AM em Espiritualidade
por Christina Nunes


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Existem e sempre existirão pessoas que, de passagem em nossas histórias, e nelas permanecendo com duração mais ou menos prolongada, deixam-nos marcas inesquecíveis. Pretendo, aqui, falar do exemplo de uma que me marcou positivamente. Colega de um tempo de vida profissional que de há muito se foi, quando dividíamos aprendizado útil, instantes descontraídos ou acres agruras num setor do serviço público cujo contexto de trabalho, na época, não era dos mais fáceis.

Tratava-se de uma mulher moça, ainda na faixa dos quarenta anos. Para nosso susto e profundo pesar, deixou-nos intempestivamente, num choque brutal entre veículos na Ponte Rio Niterói. Grande consternação! Seu caso situou-se entre os assuntos da ordem do dia nos jornais diários, visto que, no intuito de salvá-la, tentando tirá-la de dentro das ferragens do carro, um outro personagem, que estacionara atrás tendo o filho pequeno consigo, acabou por morrer também, tragicamente atropelado, em decorrência da legendária problemática da ausência de acostamentos na ponte!

Foi-se, então, a minha colega, foi-se o seu pretenso salvador! Comoção geral no nosso ambiente de serviço, de vez que era ela, geralmente, benquista! Muitas lágrimas na despedida, inclusive de minha parte, porque tratava-se daqueles episódios de perda com os quais não lidamos com a devida conformação para com os designios divinos. Fica-nos a impressão de uma inversão incompreensível da ordem natural das coisas, com a despedida de alguém plena em saúde, ainda tão moça, cheia de planos, afazeres, vínculos afetivos.

Com os procedimentos de inventário no ambiente de trabalho depois da sua partida, algo curioso sucedeu. Depois de conferidos e custodeados os seus pertences, esvaziando-se enfim as gavetas da mesa onde dividia conosco os afazeres, ao olhar a gaveta entreaberta, notei que sobraram dois ítens, provavelmente considerados destituídos de importância e relegados ao abandono por amigos, familiares e chefes de serviço: o seu nariz de palhaço e os seus "dentes de vampiro", de matéria plástica, destes que as crianças por vezes usam no carnaval, ou em festas infantis à fantasia!

Tomei-os nas mãos, emocionada, as lágrimas subindo-me, incontidas, aos olhos. Porque aqueles objetos pareciam, de algum modo, ter sido por ela reservados especialmente à minha guarda!

Era, talvez, eu a que mais me divertia com a jovial colega, de resto adepta do Budismo, religião para com a qual guardo indiscutível afinidade pelos seus conceitos, quando, de chegada ao trabalho diário, deparava, já no primeiro horário, com a cena pitoresca: ela sentada em sua mesa entre os papéis, séria e concentrada. Não levantava sequer os olhos, para olhar para quem quer que seja. Mas, eventualmente, e de modo insólito, trajando, ou aquele nariz de palhaço, ou aqueles dentes plásticos, ou ainda o conjunto todo somado a uma peruca de aspecto despropositado, bizarro mesmo, cheia de cachos desalinhados, também semelhante às que componentes descontraídos de blocos carnavalescos usam em bailes e festividades à fantasia!

Eu não me continha e ria muito. Outros, os mais bem humorados, também. Os do quadro de chefia, porém -reparava- sequer olhavam!

Não saberia dizer se ela fazia aquilo desde sempre, ou se fora iniciativa adotada depois de algum tempo, em que enfim se amofinara com os excessos de autoritarismo sem propósito, comuns àquele lugar. Certo, porém, é que se lia, implícitas naquela atitude, várias mensagens subliminares! Talvez irritasse a alguns a suprema irreverência daquela postura, mantida com insistência silenciosa num local de compromisso trabalhista. Todavia, nada se notava de diverso na atitude daquela moça, habitualmente calada, embora jovial, para além disso.

A maior e mais deliciosa mensagem, contudo, saltava à vista dos circunstantes mais sensíveis: era a de como ela se levava pouco a sério - apesar da indiscutível competência e comprometimento com as suas responsabilidades! Um modo de dizer que possuia em si, tanto a medida certa do que lhe cabia em relação às suas obrigações formais, quanto também, porém, de até onde deveria levar a sério o despotismo crasso com que muitos eram tratados naquela instituição trabalhista de autoritarismo excessivo, e de contexto hierárquico obsoleto, anacrônico, quase medieval!

Possuía, a aludida amiga, a qualidade muito mencionada nos tempos que correm pela psicologia terapêutica de todas as vertentes: a capacidade de resiliência diante das mais diversas situações! Fosse nas de descontração junto a colegas e amigos durante os horários de almoço, ou nas festividades externas ao trabalho. Fosse na duração maior e árdua das nossas jornadas de serviço, o que se sobressaía nesta colega muito querida e inesquecível era a sua constante ressurreição, como autêntica fênix, de situações as mais diversas, de minuto a minuto, que, talvez para outros destituídos deste autêntico dom espiritual, talvez que se revelassem exasperantes demais!

Recordo-me ainda hoje, nítidos como se houvessem acontecido ontem, de alguns episódios que ilustravam este adorável traço de temperamento! Vez houve em que testemunhei a situação constrangedora de vê-la frontalmente desrespeitada por um dos representantes da chefia daquele lugar, quando, talvez uma única e isolada vez, ela respondeu, oportuna, à altura - note-se, nunca alteando a voz, e jamais alterada! Desfechou, pois, uma resposta taxativa, justa, em tom baixo mas firme, desconcertando o seu interlocutor, que nada mais apôs que não um silêncio aturdido. E afastou-se tranquilamente para as suas atividades habituais.

Noutra ocasião, diante de uma circunstância recorrente naquele ambiente de difícil convivência entre algumas dezenas de pessoas, em que uma - jovem com determinado tipo de limitação psicológica de personalidade - costumava ser alvo frequente do hoje alardeado bullying, foi, ela, a única solidária comigo quando, e fugindo à tolerância prudente que me é habitual, me impacientei, e resolvi defender a moça, chamando com civilidade a atenção dos circunstantes para a impropriedade com que a molestavam com puerilidades a todo momento e pretexto! Noutro episódio, ainda, durante um dos diálogos saudáveis, leves que de tempos em tempos mantínhamos, fez uma preleção louvável sobre como apreciava os momentos de reunião afável com amigos, num restaurante ou lanchonete, aludindo que, a isso sim, todos deveriam conferir importância privilegiada sobre todos os acontecimentos da vida, porque são estas oportunidades felizes que nos abastecem a alma de robustez, de eflúvios renovados de ânimo para a sintonia devida com o lado positivo da vida, da modo a que enfrentemos, com a necessária coragem, e sem esmorecimentos, os desafios maiores ou menores do cotidiano agitado que a nós todos é comum!

Recordo-me também de que, em certo episódio em que comparecemos ao velório e ao enterro da mãe de outra colega de trabalho, ela nos acompanhou. Mas, estranhamente, não quis seguir até o ato final do sepultamento! Discreta, recolheu-se a uma lanchonete, e lá ficou nos esperando.

Talvez o seu espírito, altamente intuitivo, a preparasse para a proximidade da sua última e maior resiliência: a de cedo nos privar da luz do seu convívio, e da grande doçura de sua presença!

À Eneida
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Conteúdo desenvolvido por: Christina Nunes   
Chris Mohammed (Christina Nunes) é escritora com doze romances espiritualistas publicados. Identificada de longa data com o Sufismo, abraçou o Islam, e hoje escreve em livre criação, sem o que define com humor como as tornozeleiras eletrônicas dos compromissos da carreira de uma escritora profissional. Também é musicista nas horas vagas.
E-mail: [email protected] | Mais artigos.

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