Sabíamos que essa opção ao outro também era ruim - mas, pelo menos, não havia risco de um golpe militar. O que não esperávamos é que ela viesse acompanhada de uma aliança com outro grupo poderoso, capaz de nos empurrar rumo a uma escalada de censura.
O fato de ainda haver quem cogite votar novamente NOS DOIS diz muito sobre o Brasil.
Essa cegueira ideológica está representada no livro de Orwell em Boxer, o cavalo símbolo da fé cega. O trabalhador que repete: "trabalharei mais ainda" e "Napoleão tem sempre razão" como um mantra. Mesmo quando as coisas começam a dar errado, ele prefere acreditar do que questionar.
Boxer é o cidadão comum. Aquele que carrega o país nas costas, enquanto os que decidem seu destino vivem em outra realidade.
Hoje, tem gente nas redes sociais defendendo AUMENTO DE IMPOSTO! A pessoa QUER PAGAR MAIS IMPOSTOS!!!!
E quando Boxer já não serve mais... bom, o destino dele também é um alerta. O quanto vale, afinal, o cidadão para o sistema?
Essa semana mesmo, vimos o governo negar o uso de um avião da FAB para repatriar o corpo de uma brasileira morta na Indonésia, mesmo com toda a comoção do país. A mesma FAB que foi usada este ano para trazer uma política condenada por corrupção no Peru (com sigilo de gastos, claro).
O Itamaraty disse que a lei não permite. Mas e no caso dos jogadores de Chapecó? E pra levar ministro a jogo de futebol ou casamento, pode?
Há uma cena recorrente no livro: os porcos alteram os registros da revolução, os feitos de Snowball (um dos porcos líderes da rebelião original) são apagados, e o passado é constantemente reescrito para servir aos interesses do novo chefe, Napoleão. Isso está acontecendo AGORA, enquanto escrevo:
A negativa do translado da brasileira foi tão ruim para a imagem do governo que, menos de 24h depois da negativa oficial sobre o caso da brasileira, o presidente contradisse o Itamaraty e afirmou que o governo faria o translado.
E isso é só UM exemplo. Qual a versão que vai ficar disso?
Quando ano que vem alguém disser que o governo se recusou a pagar pelo translado até sofrer pressão das redes sociais, o defensor do governo vai dizer que isso é uma fake news. E talvez até algum órgão (o futuro "Ministério da Verdade" que estão aprovando agora) retire o post da internet.
Estamos caminhando pra isso.
Pense: quantas versões diferentes já ouvimos de um mesmo fato político?
Quantos desmentidos em horas? Quantos slogans que mudam de sentido conforme o vento?
A verdade se tornou uma mercadoria, um jogo de números, influência e narrativas.
No livro, as regras pintadas no celeiro vão sendo alteradas discretamente, à noite, para se adequar às vontades dos líderes. A distorção absurda do conceito de igualdade revela como os líderes manipulam a linguagem e os ideais para justificar privilégios e opressão, mantendo a aparência de Justiça.
Lembra algo?
No Brasil, princípios constitucionais são reinterpretados conforme o interesse do momento, leis criadas com intenções nobres que viram instrumentos de opressão e reformas que nascem com a promessa de "modernização" e terminam precarizando a vida de quem já carrega o país nas costas. E sempre com boa retórica, claro.
Afinal, os porcos também sabem discursar.
A pergunta que incomoda é:
Como manter uma sociedade livre se não conseguimos concordar nem sobre os FATOS?
Talvez o que Orwell nos ensine com A Revolução dos Bichos é que o problema não está apenas nas figuras no poder, mas na estrutura que permite que esse poder seja concentrado, na falta de vigilância dos governados e na facilidade com que esquecemos o passado.
Quando não há memória, não há responsabilidade.
E sem responsabilidade, a história se repete - com novos rostos e bandeiras.
O perigo não é o porco que sobe ao poder. É o aplauso resignado de quem já se acostumou ao cheiro da lama. Por isso, talvez a verdadeira pergunta deixada por Orwell em A Revolução dos Bichos não seja apenas "quem está no poder?", mas:
Estamos atentos o suficiente para perceber quando os mandamentos estão sendo reescritos?
Estamos cobrando nossos líderes, ou apenas repetindo mantras como Boxer?
Estamos preservando a memória coletiva ou aceitando a versão mais conveniente da história?
Hoje, ao celebrarmos Orwell, não basta admirá-lo. É preciso escutá-lo.
O desejo de mudança (a tal "revolução") continua vivo, mas soterrado por bobagens e picuinhas que nos distraem do que realmente importa.
A fazenda muda de nome, os animais mudam de forma, mas o ciclo insiste em se repetir.
A questão não é mais se haverá uma nova revolta. A questão é: Será que dessa vez a gente vai lembrar o que esquecemos da última?
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