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Flores: Um conto inspirado na visita ao Templo Zu Lai

Publicado por Maria Guida em Espiritualidade

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Elles estavam felizes em suas simples existências de flores.
Um ao lado do outro, expunham suas delicadas corolas ao calor ameno da manhã de inverno. Talvez por causa disso, havia uma inexplicável alegria na voz das monjas, apesar dos mantras de culto aos mortos.

Ninguém podia imaginar quanto tempo elles tiveram que esperar até estarem assim, tão próximos um do outro, pendendo do mesmo galho.
Ella já havia perdido a esperança, enclausurada na forma de pequena semente.

Elle repousou tranqüilo e quase sem memória, nas cinzas de alguém que havia sido, muito depois do tempo em que estiveram juntos, numa vila de pescadores, ao norte da Sicília.
Lembrava vagamente da estranha alegria que sentira, quando a urna mortuária foi colocada na mochila do monge. Cruzaram as águas do Indico, e depois, as do Atlântico, sempre na direção do poente. Acordava e adormecia, embalado pelas ondas. E à medida que o tempo passava, ia ficando cada vez mais desperto.
Ella adivinhou que o reencontro estava próximo, quando o fruto vermelho que a envolvia tocou os lábios da monja.

A jovem chinesa revolveu-a dentro da boca, riscou de leve sua pele com os dentes brancos, cuspiu-a na palma suave da mãozinha casta. Depois, deixou que Ella adormecesse meses a fio, no bolso quente de um casaco.
Um dia, sem mais nem menos, a monja chegou ao seu destino, desfez as malas e sacudiu a roupa para o lado de fora das janelas do templo.
Ella foi arremessada para o sopé do morro, onde mais tarde, haveria um lago e um jardim. O peso da enxurrada e os pés dos operários empurraram-na cada vez mais fundo, solo adentro.
Fechou-se o mais que pode, resistindo ao calor dos verões, mas um dia, reconheceu que não podia esperar mais. Explodiu num emaranhado de radículas, num caule fino e reto, que, mesmo contra a sua vontade, crescia rápido, em direção à luz.
Não era mais do que duas pequenas folhas, tremendo ao fresco vento outonal, quando o missionário apareceu.
A cerimônia foi breve, as palavras, desconhecidas, o tom, solene.

E então - maravilha das maravilhas - a caixa talhada em sândalo abriu-se, no ar, e Elle choveu sobre Ella, em forma de nuvem cinza-prateada.
Se vegetais suspirassem ou gemessem de prazer, a noite chuvosa teria sido entrecortada por ruídos inexplicáveis.
Mas, como brotos de cerejeiras e cinzas humanas têm uma natureza dócil e silenciosa, Elle deixou-se assimilar por Ella, molécula após molécula, até circular livre e feliz, pelo delgado corpo, como seiva, evitando, por pura prudência, as extremidades.
Parecia ser um final feliz, se não fosse a intromissão do elemental responsável pelo projeto da árvore que Ella estava destinada a ser.

Evandór exigia uma tomada de decisão. Elle não poderia, continuar circulando por muito tempo como seiva, sob pena de comprometer o desenvolvimento dElla. Elle deveria tornar-se uma parte qualquer da planta, permanecer ali por algum tempo, submeter-se à natural continuidade do ciclo, sendo descartado, e re-assimilado por um outro ser - vegetal, animal ou mineral.
Entristeceram-se.

Ella deixou pender seus poucos finos galhos, até o dia em que Elle resolveu que seria flor. E por que não, semente? Indagou o elemental – irritado.
Elle não disse nada, mas, Ella, em sua longa experiência de planta, havia compreendido tudo.

Cerejeiras demoram a florescer. Elle havia escolhido a alternativa mais segura. Fechar-se em si mesmo, como semente, dentro de um fruto, era correr o risco de perder-se dElla novamente.
Sendo flor, mesmo murchando e morrendo, teria muito mais chances de ser novamente assimilado.

Diante do firme propósito dElle, o elemental deixou cair o queixo, pensativo, até porque intuía que essa escolha sinalizava novos problemas.
Depois da decisão dElle, Ella abandonou sua posição de guia, no topo do ramo central, e concentrou–se no desenvolvimento de um galho secundário.

Em vão, o elemental tentou dissuadi-la. Noite e dia repetia a Ella que experiências assim não resultavam bem. Além de não fazer parte do projeto original, o novo galho era um desperdício de energia. Com certeza teria folhas e flores de uma vitalidade exuberante, para definhar e morrer, em seguida. Isso sem falar no desequilíbrio que o ramo inesperado traria à proverbial beleza da planta.

Ella não ligava. Já havia escolhido uma consciência substituta para a cerejeira. Quando não pode mais esconder, revelou que seu plano não era o de ser galho, mas, individualizar-se em flor, ao lado dElle.
Como alma-semente, Ella podia programar o seu próprio desabrochar, e, mais do que isso, sincronizá-lo ao dElle. Viveriam juntos alguns belos dias de flores, e, com sorte, seriam descartados e assimilados inúmeras vezes, em caule, folha, flor ou raiz, até que a árvore deixasse de existir.

Tempo feliz foi o meditativo elaborarem-se, projetos de botões, desenvolvendo suavidade de pétala, impulsividade de pistilo, leveza de pólen.
Aprenderam que ser flor significa abandonar-se em humilde servidão às necessidades da reprodução, seguindo as duras leis da progressão geométrica, tanto no domínio da química, que determina tonalidade e fragrância, quanto no controle da mecânica biológica, que estabelece textura e simetria.
Concentraram-se na expressão de curvas e recortes.
Esmeraram-se na compreensão da sutil diferença entre estar côncavo ou convexo.

Até que um dia, cederam ao apelo irreversível da estação e, sob o sol nascente de agosto, desabrocharam - finalmente! - inseguros, mas alegres.
Tremiam, sem saber se era o vento frio, ou a intensidade do momento, o que lhes dificultava a respiração.
Juntos, reconheceram-se próximos, frágeis, únicos, belos, e, mais do que tudo, felizes.

A tarde caiu. O templo esvaziou-se. O calor do sol tornou-se noite gelada, que obrigava a um doloroso recolhimento.
Estou sem forças - Ella pensou.
Estou cansado - Elle disse.

Então, a mão impulsiva de Mulher arrebatou o galho, passando-o com um sorriso de desdém pelo rosto de Homem, que caminhava, triste e silencioso, ao lado. Mulher correu, e no meio da ponte sobre o lago, atirou Elle e Ella à água.

Surpresos, Elles gastaram as últimas forças tentando manter as corolas para fora da água.
Por fim, boiavam, na direção da margem.
Homem cruzou a ponte, curvou-se, esticou o braço, e na larga palma da mão, acolheu, com devoção, o galho. Em silêncio, guardou as flores no bolso do paletó.

Naquela mesma noite, Elle e Ella foram cuidadosamente colocados entre as páginas de um volume de Shakespeare.
Volta e meia, são visitados pelos olhos mansos de Homem, que recorre a Elles, em busca de consolo.
Enquanto lê os poemas em voz alta, toca os corpos ressecados, e nesse contato encontra um estranho alívio. As flores lhe renovam a certeza de que o amor é algo palpável, e não uma mera sensação.
Às vezes, os olhos brilham, cheios de lágrimas, outras, estão entorpecidos pela bebida.

Nesses momentos, Elle e Ella refletem sobre a insensatez dos humanos e sua pouca ou nenhuma determinação. E silenciam, como as naturezas mortas costumam sempre fazer.

Mas, continuam felizes, em suas simples existências de flores.

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Sobre o autor
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Maria Guida é
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