Primeiramente precisamos esclarecer o que é a SOMBRA psicológica
e depois, relaciona-la às demais funções do plano psíquico
pessoal ( incluindo a PERSONA ). Cada um de nós nasce com uma bagagem
própria, tendências e potenciais a serem atualizados em vida. Somos
como uma semente que carrega em si mesma - potencialmente - as direções
do desenvolvimento e crescimento humano, tanto no geral quanto no particular.
Mas, como sementes que somos, em nosso desenvolvimento somos forçados
a uma adaptação ao meio ambiente natural, familiar e cultural.
O contato com o meio estabelece quais potencialidades serão mais estimuladas
e efetivamente exercidas. Ou seja, o meio ambiente humano ensina à criança
o que é certo e o que é errado; ensina o que deve e o que não
deve ser feito, pensado, sentido, observado e assim por diante. Isto cria em
todos uma fronteira de diferenciação entre o que cada um é
- o que cada um deseja ou pretende - e o quê de cada um é possível
efetivamente ser exercido ou expressado na situação familiar e
social - o que a cultura deseja e ordena -.
Deste confronto ( ou conflito ? ) de forças surge em cada um a noção
de um EU autônomo e, principalmente de uma "simulação"
do EU PESSOAL cujo resultado poderíamos chamar de EU PARA OS OUTROS (
O EU PESSOAL menos aquilo que é inaceitável e que é "surripiado"
dele pelas exigências do meio ). A simulação através
de um EU PARA OS OUTROS já aparece na criança que precisa diferenciar
e discriminar o que ela pretende ou deseja SER daquilo que lhe é PERMITIDO
SER. A este PERSONAGEM damos o nome de PERSONA. É importante ter uma
PERSONA eficiente, que cumpra seu papel de EU PARA O MUNDO e que seja, ao mesmo
tempo, eficiente "EMBAIXADOR do EU PESSOAL" nas relações
com o meio externo, tornando-se "um respeitável integrante de suas
estruturadas organizações". Para efeitos didáticos
e estatísticos vamos desenhar o EMBAIXADOR de nosso exemplo com qualidades
da Polaridade Ativa ( ir ao mundo, agressividade, desejo de poder ) e de extroversão
( foco da atenção no objeto exterior ). Continuando a usar esta
analogia ( do embaixador ) vemos então que esta condição
ideal não é tão freqüentemente atingida pela maioria
de nós; ou seja, o embaixador não representa eficientemente os
direitos e interesses do Reino do EU, o centro de governo para o qual também
deveria trabalhar. No começo da carreira o EMBAIXADOR se esforça
em satisfazer aos outros mais do que ao EU que ele representa. Ele morre de
medo de fazer coisas erradas ou condenáveis, que o façam deixar
de ser convidado nas festas e o tornem eventual alvo de recriminações
no reino onde ele é um iniciante freqüentemente desajeitado. Ele
descobre que há uma fronteira desconfortavelmente sutil entre ser gentil,
deixar de ferir os sentimentos dos outros e ser honesto e verídico consigo
mesmo. Então ele negocia mal muitas coisas: "engole sapos",
finge gostar do que odeia, aprende a gostar do que detesta e até a não
gostar do que adora; eventualmente conformando-se demais. Com o tempo e o aprendizado
neste difícil país estrangeiro ele descobre que, no início,
negociou mau muitos aspectos dos seus "contratos com os outros", mas
aí já pode ser tarde demais, pois todos já estão
acostumados com a sua correção e educação. Todos
olham para ele como se o conhecessem esperando dele coerência, segurança
e repetição no seu modo de SER e, secundariamente, no modo de
AGIR.
Nosso embaixador perde o sono e se preocupa em pensar a que acontecerá
caso ele externe a rebeldia ou revolta que ele muitas vezes sente. Na certa
se verá diante da ameaça de perder o terreno que acredita ter
conquistado. O melhor a fazer - ele decide - é omitir e adiar as exigências
e pretensões do Reino do EU. Se possível ele vai realizar alguma
coisa apenas para os de seu governo acreditarem que um dia serão satisfeitos
("apenas pra inglês ver!") enquanto ele, por necessidade
e carência, necessita ocupar-se de objetivos de outra natureza: imprescindíveis
e inadiáveis. Nesta fase ele já ficou tanto tempo ocupado com
as demandas e exigências do reino exterior que esqueceu ou perdeu o contato
com o Reino do EU. Se ele voltar, em visita às suas bases biológico
/ instintivas, sentirá certa estranheza e desconforto, naquele mesmo
lugar que, um dia, foi o seu ponto de referência. Não estará
em paz nas conversas em torno do fogão... Poderá não ter
ninguém com quem dividir suas inquietação. Entre os familiares
- que estão a viver suas vidas em contexto diferente do dele - ele se
sentirá um estranho no ninho. A nenhum guerreiro (especialmente em uma
importante missão) é conveniente perder o contato com sua base
de suprimentos. As comunicações vindas de lá, às
vezes lhe parecerão sem propósito, oriundas de um Reino que não
o compreende nem sabe o que ele está, de fato, vivendo em sua missão
no mundo exterior; então, pode chegar uma hora em que ele não
representa eficientemente os desejos e necessidades do seu próprio governo
ao mesmo tempo em que não conseguiu ser inteiramente aceito no novo país,
onde nunca será mais do que um "estrangeiro bem adaptado".
O elo de comunicação pode assim sofrer momentâneas ou duráveis
interrupções.Os únicos vencedores neste combate de forças são o fingimento
e a hipocrisia, pois nem o REINO do EU ( que enviou o embaixador ) nem o país
que o acolheu vão ganhar grande coisa com este estado de coisas, que
não interessa a ninguém. Contudo, como o real quase sempre não
acompanha o ideal, nosso embaixador segue carreira e, longe de sua família,
conhece uma moça local pela qual se apaixona e começa a fazer
planos de casamento, ao mesmo tempo em que seu desenvolvimento em um país
estrangeiro o fez ser reconhecido e admirado. Os envolvimentos e as alianças
que estabeleceu na comunidade geraram-lhe um bom emprego e significativo poder
pessoal. A esta altura um quase irresistível desejo de autonomia anda
corroendo sua lealdade ao Reino do EU e ele agora se vê na contingência
de ter que aceitar propostas irrecusáveis que lhe permitirão dispensar
os rendimentos e o apoio do governo para o qual trabalhava. Deste modo ele acredita
que "mata dois cachorros com um tiro só", solucionando ao mesmo
tempo um desgastante conflito interno ( de lealdade ) e um conflito externo
( de necessidade de aceitação ). Logo ele estará aliviado
podendo olhar apenas para um lado ao invés de ficar feito equilibrista
no meio do abismo... Dedicará longo tempo de sua vida a se estabelecer
nestas condições. Talvez, um dia, dolorosamente descubra que os
dois cachorros faziam parte integrante dele mesmo. Felizmente, pessoas ou coisas
ressuscitarem, no plano psíquico não é nada incomum.
EM nosso exemplo o EMBAIXADOR é uma analogia para a função
do EU-PARA-OS-OUTROS: a PERSONA. Este "EU de marketing", com o tempo,
se mostra mais como um "servidor do mundo exterior" do que o "embaixador
representante do EU." Os atores de talento sempre existiram em menor número
do que os canastrões que só interpretam a si mesmos e adoram ouvir
sua própria voz. Este estado de coisas precisa de ser corrigido mas os
ideais são difíceis de atingir ( ! ) e a vida vai tomando seu
curso natural ( ! ) até que o nosso personagem descobre que ainda que
esteja tudo certinho ele não está necessariamente feliz: algo
de essencial está lhe faltando e ele nem consegue dizer exatamente o
quê ! Ele se questiona pois tudo que fez foi com o intuito de se realizar
e levar uma vida boa ( aos seus e aos olhos dos outros ). Muitos gostam dele
e alguns até mesmo o admiram e invejam e no entanto ele não se
sente nem completo nem feliz. O que estará acontecendo ? No país
do EU algumas vozes se levantam para chama-lo de traidor e de "embaixador
de si mesmo"... Como seria bom se se pudesse calar a voz da oposição
! Mas, nem sempre se consegue este prodígio... Dói ouvir estas
coisas, mas ele continua sua luta pois o mundo é grande e há muito
ainda que fazer, muito que conseguir e muito a desejar - principalmente...
Pois bem... quanto mais forte for a cisão entre o EMBAIXADOR e o Reino
do EU ( para o qual sua função foi concebida ) maior é
o conflito interno. Partes essenciais e que pertenciam ao próprio cerne
do EMBAIXADOR são relegadas na ânsia de se adaptar e de se integrar
ao "status quo" do mundo em que vive. Exatamente por isso são
imediatamente incorporadas na oposição que se estrutura em sua
retaguarda, pois não deveriam, em primeira instância, ser relegadas,
e muito menos reprimidas, que é o que mais acontece. Tudo que pertence
ao reino do EU ( compondo suas origens ) e que foi reprimido e afastado da AÇÃO
CONSCIENTE do EMBAIXADOR do EU vai constituir a SOMBRA PESSOAL do EMBAIXADOR.
Este contingente de desejos, sentimentos, ações ou impulsos passam
a existir sim, mas como "párias", banidos, desterrados e exilados
da PERSONA e do EGO IDEAL passando a ocupar-se de atitudes e propostas associais,
perturbando, interpelando e incomodando... É inexorável, quer
dizer inevitável, que, quanto maior for o esforço do EMBAIXADOR
em avançar na busca de atingir seus propósitos unilaterais - ainda
que, a seu ver, em prol de uma boa causa -, maior será a oposição
e a gritaria interna. Um EMBAIXADOR com autonomia e poder para calar a oposição
e se tornar o único poder reinante tudo fará para atingir a paz
e o equilíbrio ( sob sua limitada ótica ) em um mundo que pouco
ou nada sabe da natureza de seus conflitos interiores e que pode ser mantido
neste estagio de ignorância, por tempo indefinido.
Ouvir as vozes da sua oposição interna seria sábio, porém
não há tempo, as demandas são complicadas e as exigências
da vida exterior já são suficientemente grandes. Quase nunca sobra
energia para dar atenção a estas outras necessidades ( as interiores
).
Ele dirá: "Somos muito limitados e qualquer um há de convir
que "não existe esse negócio" de dar atenção
a dois pontos de vista ao mesmo tempo. Olhamos para um lado e é só.
Essa é a realidade, inclusive é assim que a percepção
funciona: a atenção tem um foco e tudo que não for pertencente
ao foco da atenção nos escapa". O discurso do EMBAIXADOR
bem poderia ser esse:
_ "Não há o que dê jeito nisso... Primeiro é
preciso vencer no mundo, para então e só depois cuidar destas
"pressões" e "reivindicações" interiores".
A oposição ao EMBAIXADOR nesta nossa analogia é a ação
da SOMBRA PESSOAL. Esta se constrói e se estrutura de modo mais ou menos
autônomo ao EU, sendo uma espécie de "antiPERSONA", assim
como esta poderia ser denominada de "antiSOMBRA PESSOAL", pois são
opostas e complementares uma da outra. Um centro que mereceria ser chamado de
CONSCIÊNCIA está a meio caminho entre estas duas estruturas ou
funções psicológicas.