Publicado dia 3/10/2010 4:33:45 PM em Espiritualidade
Orfeu é essencialmente um reformador. O orfismo quebra com a religião homérica, principalmente no tocante à sua teogonia. Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida pelos rapsodos gregos. Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na origem estava Cronos (o Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos, que geraram o Ovo Cósmico, um ovo de prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo surgiu o deus andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento, a parte superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a Terra. Fanes criou a Lua e o Sol, os outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e toda a criação. Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o criador único. Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais radical: um verso, atribuído a Orfeu, proclama que "Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas". A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é preciso salientar Dioniso-Zagreu, que terá papel fundamental no culto do orfismo.
Um artefato importantíssimo no orfismo são as "lamelas órficas". São pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.
Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Especialmente cristãos, se considerarmos que o cristianismo como o conhecemos floresceu na Grécia e em Roma. Nos afrescos das catacumbas romanas encontram-se imagens de Orfeu, tangendo sua lira no meio de animais simbolicamente cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros e pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma simbolizando Orfeu e outra, o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como o Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar Cristo de "Orfeu báquico". A semelhança dos simbolismos é flagrante: o crime primordial dos Titãs e o pecado original de Adão e Eva; a consumação do corpo do deus cristão e do deus grego; Cristo como filho de Deus, assim como Orfeu era filho de Apolo, são pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista. Se pouco restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo.![]() | |