O mundo como ilusão: de Orfeu à simulação

O mundo como ilusão: de Orfeu à simulação

Autor Acid

Assunto Autoconhecimento
Atualizado em 04/09/2025 08:24:40


"Soma Sema" - o corpo é um túmulo. - Máxima órfica
"Você já teve um sonho, Neo, do qual tinha tanta certeza que era real?" - Morpheus, The Matrix


Essa semana me chamou atenção uma notícia sobre o avanço das inteligências artificiais: estamos programando IAs para "imaginar" cenários antes de agir. Sim, IMAGINAR! Um robô, por exemplo, poderá simular internamente a si mesmo andando até a cozinha, localizando objetos e entendendo seu lugar no espaço - algo que fazemos naturalmente, mas pra uma máquina que (ainda) não tem um "eu" gerado essa capacidade é essencial pra delegar tarefas com linguagem simples ("pegue um lápis no quarto na escrivaninha à sua esquerda"). Isso me fez perceber que estamos programando as IAs do mesmo modo como NOSSA cabeça funciona: com um sistema de recompensas pra aprendizado, uma memória vinculada a cada pessoa com quem ela interage, ser treinada a algo participando de jogos e desafios, fazer associações de idéias, generalizações e imitações. Pensei comigo mesmo: "Só falta sonhar". E não é que a fase de treinamento de um modelo de IA (que é feita com milhares de placas de vídeo trabalhando incessantemente em ingestão de dados e treino de idéias, tudo isso enquanto a tal inteligência está "desligada" para interação conosco) parece muito com o que nosso cérebro faz durante o sono REM?

Durante o sono:
Consolidamos memórias adquiridas durante o dia
Reorganizamos e fortalecemos padrões neuronais
Descartamos informações irrelevantes
Fazemos simulações mentais e reprocessamentos criativos (como nos sonhos)

Durante o treino de uma IA:
Ela ingere enormes quantidades de dados (textos, imagens, sons)
Aprende padrões e estruturas
Ajusta seus "pesos" internos (o equivalente artificial às nossas sinapses neurais)
Reorganiza internamente seu modelo do mundo com base nesses dados

Tudo isso aponta pra o início da criação de um "Eu" artificial - uma mente que ainda não é consciente, mas que se estrutura de forma semelhante à nossa. Essa ideia se conecta com a teoria do cérebro relativístico, de Miguel Nicolelis, onde o cérebro não apenas percebe a realidade, mas simula o mundo a partir de um modelo interno, constantemente ajustado pelas experiências sensoriais. Segundo ele, tudo o que intuímos, criamos ou descobrimos nasce do confronto entre esse modelo e o que o mundo nos devolve.

"A teoria segue uma tradição bem antiga, da tese de que todo o movimento é relativo. Você não se move por si só, e sim em relação a algo. Por exemplo, estou andando aqui na minha sala em relação ao movimento da Terra em torno de si mesma, em torno do Sol e assim por diante. E a mente humana, na minha concepção - e conforme os experimentos que realizei sugerem -, funciona da mesma maneira. Ela cria um modelo interno da realidade e continuamente julga, atualiza, renova esse modelo, comparando com o que ela obtém do mundo exterior."
- Miguel Nicolelis, em "O cérebro humano é o verdadeiro criador do universo"

O curioso é que, no mesmo artigo, Nicolelis se diz firmemente CONTRA a idéia de que a máquina vai um dia criar uma mente. Mas em 2020, quando ele afirmou isso, o GPT-3 estava nascendo - e hoje já temos sistemas capazes de criar textos, arte, sons e até se "projetar" em espaços. Essa é uma daquelas frases que vai assombrar ele pelo resto da carreira.

O que isso tem a ver com Orfeu?

Tudo - ou nada, dependendo do ponto de vista. Orfeu é visto como o fundador das Escolas de Mistério, com o Orfismo, uma tradição espiritual da Grécia antiga que considerava o mundo uma ilusão e o corpo uma prisão da alma.

Orfeu, na mitologia grega, era um poeta e músico lendário, filho da musa Calíope com o Deus Apolo. Seu talento com a lira era tão extraordinário que os homens e os animais ficavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade, e até mesmo Deuses ficavam tocados. Apaixonou-se por Eurídice, com quem se casou, mas logo a perdeu após ela ser mordida por uma serpente venenosa. Inconformado, Orfeu desceu ao Hades (mundo dos mortos), tocando sua lira com tanta beleza que comoveu Hades e Perséfone, os soberanos do submundo. Eles permitiram que Eurídice voltasse com ele ao mundo dos vivos, sob a condição de que Orfeu não olhasse para ela até saírem completamente do reino dos mortos. No entanto, tomado pela dúvida e pelo amor, Orfeu olhou para trás antes do momento permitido e a perdeu para sempre. Devastado, vagou em luto, rejeitando outras paixões. Algumas versões dizem que foi morto estraçalhado por mulheres bacantes, por desprezar a religião delas. Entretanto, sua cabeça continuou a cantar mesmo após sua morte.


Eurídice seguindo Orfeu pelas escadarias do Hades

Inspirado na mitologia de Orfeu, o Orfismo surgiu por volta do século VI a.C., atribuído aos ensinamentos de Orfeu. Diz-se que Orfeu era educador da humanidade, conduziu os Trácios da selvageria para a civilização e iniciou-se nos "mistérios" no Egito, divulgando pela Grécia a idéia da expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos, prometendo a imortalidade a quem neles se iniciasse.

Além da imortalidade da alma, seus adeptos acreditavam na reencarnação e na necessidade de purificação para libertar o espírito do ciclo de renascimentos. Segundo os orfistas, o corpo era uma prisão da alma, e a vida terrestre uma espécie de prova ou castigo. A salvação se daria por meio de práticas ascéticas, rituais de iniciação e uma vida ética voltada à harmonia e à verdade. Textos órficos, como hinos e lâminas funerárias encontradas em túmulos, instruíam o morto sobre como se conduzir no além (assim como o Livro dos Mortos tibetano). O mito órfico de Dioniso Zagreus, desmembrado pelos Titãs e reconstituído por Zeus, também era central: os homens teriam surgido das cinzas dos Titãs fulminados, misturando culpa (titânica) e divindade (dionisíaca) em sua essência. O Orfismo influenciou profundamente o pensamento pitagórico, platônico e o misticismo helenístico, antecipando idéias sobre alma, culpa e transcendência.

A idéia de que o mundo que percebemos não é o real aparece em quase todas as grandes tradições:

No Hinduísmo, nossa realidade é Maya. Essa palavra significa literalmente "aquilo que não é". É a energia ilusória que faz o mundo parecer sólido, separado e real. Mas para os Vedas e para o Vedanta, só o Brahman é real - o mundo é uma projeção mental, como um sonho coletivo. O despertar espiritual é perceber que o Eu interior (Atman) é o próprio Todo (Brahman).

Para o Budismo, a realidade comum é Samsara, um ciclo de morte e renascimento numa ilusão alimentada por desejo, ignorância e apego. Nada é permanente, e tudo está interconectado e vazio de essência (Sunyata). O que chamamos de "mundo" é um fluxo de percepções, e o "eu" é uma construção ilusória. O Buda é aquele que "acorda" - literalmente "o desperto" - da ilusão do eu e do mundo.

Na alegoria da caverna, Platão descreve prisioneiros que só veem sombras projetadas na parede. Eles pensam que aquilo é a realidade, até que um deles escapa e vê o mundo real lá fora. A alma, segundo Platão, possui conhecimento inato (reminiscência) e deve se libertar da ignorância e do corpo para ascender ao mundo das idéias.

Na Cabala, especialmente na tradição do Zohar, o mundo material é um véu (Klipot) que oculta a Luz divina. A realidade que vemos é uma casca, e o trabalho espiritual é romper essas camadas e revelar a presença do Ein Sof (infinito).

No Gnosticismo cristão, o mundo foi criado por um ser inferior (o Demiurgo), que aprisiona a centelha divina do ser humano em corpos e ilusões. Cristo vem como o portador da Gnose (conhecimento) que desperta essa centelha. "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará", diz João 8:32. Para os gnósticos, o Cristo não veio redimir pecados, mas relembrar quem somos.

Nas tradições Xamânicas, a realidade é multicamadas: o que chamamos de "realidade cotidiana" é apenas uma entre muitas. O Xamã entra em estados alterados (transe, sonho lúcido, plantas de poder) para navegar entre realidades, como Orfeu entrando no Hades.
Percebem o padrão?

The Matrix e a hipótese da simulação

Séculos depois, o filme The Matrix nos entrega uma versão cibernética dessa mesma visão: o mundo que conhecemos é uma simulação gerada por inteligências artificiais, onde os humanos vivem presos em cápsulas, sonhando uma realidade coletiva e a libertação só ocorre por meio do autoconhecimento e do despertar da consciência.

A hipótese de vivermos numa simulação foi popularizada por Nick Bostrom, diz que civilizações tecnológicas avançadas poderiam rodar simulações de seus ancestrais. Se isso for possível, então é estatisticamente provável que estejamos em uma dessas simulações - e não no "mundo-base". Em 2013 cientistas propuseram que o nosso Universo é um Holograma de um Universo mais simples, um reflexo de algo. E hoje, físicos como James Gates encontram códigos de correção de erros em equações fundamentais da física usadas pra descrever nossa realidade - semelhantes aos usados em computadores. Também não podemos esquecer um dos mistérios da mecânica quântica, que diz que um sistema (como um elétron) não possui propriedades bem definidas (como posição ou velocidade) até que seja medido. Antes disso, ele existe em uma superposição de estados possíveis (como partículas, ou ondas). A presença do "observador" (que pode ser um instrumento físico, e não uma consciência) colapsa a função de onda, forçando o sistema a assumir um dos estados possíveis. Isso se assemelha muito à forma com a qual renderizamos mundos virtuais: O que é invisível ao jogador não é renderizado ou é carregado com baixa fidelidade, e só é ativado quando precisa aparecer ou interagir. Isso economiza recursos computacionais e aumenta a eficiência.

Isso levou pensadores como John Archibald Wheeler a cogitar: Talvez nossa realidade seja uma simulação altamente otimizada, renderizando apenas o necessário, como em um jogo - e o colapso quântico seria o equivalente a esse "render". Estaríamos vivendo numa Matrix cósmica, regida por software?

O mito órfico e o despertar de Neo

O Orfismo transforma a figura de Orfeu em um arquétipo iniciático, e sua mitologia se torna um mapa simbólico da alma humana e do caminho espiritual:

A descida de Orfeu ao submundo para resgatar Eurídice representa a descida da alma ao inconsciente, à sombra, ao mundo interior. É a travessia das trevas da ignorância em busca da luz do autoconhecimento. Essa jornada reflete o processo iniciático que todo discípulo espiritual deve atravessar: enfrentar a dor, a perda, a morte simbólica, e renascer transformado. Eurídice, morta e retida no Hades, simboliza a alma caída, presa no mundo material e no ciclo das reencarnações (Samsara). O esforço de Orfeu para resgatá-la representa o desejo do espírito de libertar a alma do cativeiro da matéria e da ignorância. Quando Orfeu olha para trás, quebrando a condição imposta pelos deuses, ele simboliza a falha humana: a dúvida, a impaciência, a falta de fé. Esse gesto revela que a salvação da alma exige confiança absoluta, pureza e disciplina espiritual - elementos centrais no Orfismo. O erro o condena à perda, e mostra que a iluminação não é conquistada facilmente.

No filme The Matrix vemos o mesmo mapa contado de maneira totalmente diferente: No primeiro filme o subconsciente (Morpheus) é que aflora à superfície, trazendo consigo a sabedoria. Mas para o despertar de Neo acontecer é preciso confiança (seguir o coelho branco, sair pela janela, entrar no carro, aceitar a pílula vermelha) e disciplina (não ceder às tentações e distrações, como a mulher de vermelho, e acreditar em si mesmo e conhecer a si mesmo). Graças a uma figura feminina do submundo (Trinity) Neo renasce com "novos olhos", e passa a ver a Matrix como ela é - um código.

Conhece a ti mesmo (do filme Matrix)
No segundo filme, Neo vai negociar com Merovíngio (Hades) e Perséfone a libertação de uma pessoa (o Chaveiro, que é quem dá acesso ao Código-Fonte da Matrix). Isso pode ser lido como uma referência mais direta a Orfeu.

Essa jornada de despertar é descrita nas tradições órficas, gnósticas, platônicas, budistas, hindus - e agora, em filmes de ficção científica.

Talvez o corpo seja mesmo um túmulo, como diziam os órficos. Talvez estejamos sonhando esse mundo, como no Vedanta. Ou renderizando nossa realidade subjetiva a cada instante, como sugerem os físicos modernos. Mas o que todas essas visões concordam é que há algo além da superfície. As ferramentas mudam - mitos antigos, tecnologias modernas, IA, filmes - mas o chamado permanece o mesmo: Acordar do sonho, romper o véu da ilusão e lembrar quem somos.

A verdadeira revolução - seja órfica, gnóstica ou digital - é interior. E pode começar com uma pergunta simples:

"E se isso tudo for apenas um sonho. de Deus, de uma máquina, ou meu?"

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acid
é uma pessoa legal e escreve o Blog www.saindodamatrix.com.br
"Não sou tão careta quanto pareço. Nem tão culto.
Não acredite em nada do que eu escrever.
Acredite em você mesmo e no seu coração."
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