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Desabafo de uma criança abandonada

por Rosemeire Zago em Corpo e Mente
Atualizado em 10/06/2010 14:45:04


“O modo como fomos tratados quando crianças pequenas é o modo como nos trataremos pelo resto da vida”.
Alice Miller


Nesse artigo, peço licença a todos os leitores que sempre acompanham meu trabalho para que hoje eu possa colocar o texto de outra pessoa, a qual atendi e fez um trabalho muito profundo com sua criança interior. Minha intenção é mostrar que quando falamos de criança interior, muitas pessoas, por falta de conhecimento, pensam que é algo supérfluo, sem importância e que não devemos mexer no que passou e que está quieto. Mas se engana quem pensa que só porque não pensa constantemente no passado que ele não interfere no presente.
É claro que muitos de nossos conflitos são gerados por situações muitas vezes externas a nós e do momento presente, mas a maioria dos conflitos são internos e existem por ignorarmos a criança que fomos um dia, com nossos desejos, sonhos e uma ânsia enorme por amor e reconhecimento, que muitos carregam até hoje, adultos.
Quando oriento para entrar em contato com a criança interior, reconheço o quanto é difícil, pois geralmente por medo, ela está bem escondidinha em nosso inconsciente, com todas suas lembranças e mágoas e esperando apenas que a deixemos se expressar. E quando isso acontece, estamos próximos da cura.

O relato abaixo é de uma dessas pessoas que não entendia a origem de seus conflitos internos e muito menos os relacionava com sua infância. A queixa principal quando ela chegou ao consultório era vergonha, uma vergonha exagerada que a fazia sentir que todos rissem dela na rua, entre outras dificuldades. Não foi fácil para que ela conseguisse contato com sua própria criança, como para todos, mas quando ela se comprometeu com esse trabalho e permitiu que sua criança falasse, muitas coisas se esclareceram de acordo com seu histórico.

Quero dividir com vocês essa carta para que possam perceber que é possível ouvir a criança que está aí dentro de você, bem escondidinha, morrendo de medo em ser encontrada por alguém que a abandone ou a maltrate de novo.
Vamos ao desabafo dessa criança que de alguma forma explica a origem de seus conflitos que perduram há anos:

“Eu sou uma garotinha sem graça. As pessoas não olham para mim. Eu sou insignificante. Ninguém me vê. Não tenho atrativos. Minha mãe e meu pai não me dizem que eu sou bonitinha, que eu sou querida, engraçadinha, que tenho luz, que sou especial e iluminada. Eles nem me vêem. Parece que sou transparente. Fico tão encolhidinha, tentando me proteger, parece que estou sozinha no mundo. Tudo à minha volta é ameaçador, como se não tivesse ninguém para me proteger de qualquer perigo. Eu queria mesmo é que eles segurassem na minha mão e fizessem eu sentir a proteção, a força deles, sentir que estavam ao meu lado. Eles não me pegam no colo para que eu sinta o calor deles e meu peito protegido. Sinto um vazio em meu peito, é como se eu fosse ser agredida no peito, tamanho é minha necessidade e sinto que preciso fechar mais ainda meu peito para me proteger. Dói muito esse vazio. Eu quero colo! Eu quero que me apertem no braços para sentir o tamanho do amor deles, mas eles não fazem isso. Dia após dia cresce esse buraco. Tenho vontade de gritar para que eles percebam minha presença e me vejam. Eu choro, choro muito, mas eles não entendem o que eu preciso, pensam que quero comer ou beber, mas eu só quero carinho, atenção, colo, amor, mas eles continuam a me deixar chorando no berço. Na verdade, eles não querem me ouvir chorar. Eles não entendem nada do que eu sinto. São dois insensíveis, como se nunca tivessem sido crianças. Não sentem amor, só cuidam do meu físico, hora de comer, hora de tomar banho, hora de trocar, hora de dormir. Não conseguem compreender o tamanho da minha solidão. Eles não brincam comigo para eu me sentir importante. Não me incentivam, não me elogiam. Eu procuro ser boazinha, e nem assim eles me dão atenção, afeto, calor. Para completar, colocaram uma “bruxa” para cuidar de mim, que só me machuca ainda mais, me maltrata e também ignora minhas necessidades. Minha mãe nem vê o que ela faz comigo. E quando descobre algo, não me acolhe, não vê a minha dor, não me defende. Não me enxerga, e nem vem curar a minha dor, que só aumenta. Parece que ninguém percebe que criança tem mais necessidade de afeto e amor que comida.
E meu pai, onde está? Ele nem vem me ver, passa dias e dias sem aparecer. E quando aparece nem conversa comigo, não me faz mimos, não me dá carinho. Ele não sente nada por mim. Sinto que estou ficando cada vez mais transparente! Dói tanto essa solidão! Será que sou feia, errada, desprezível? Sou tão sem graça, que ninguém me dá atenção? Eles me torturam com essa indiferença. Como que eu queria apenas me sentir amada! Que passassem a mão na minha cabecinha, nos meus braços, nas minhas costas, para sentir o afago e o calor deles. Eu queria ouvir que sou especial, importante, linda, esperta, meiga, doce, que mereço ser amada e ser feliz. Mas do jeito que me tratam me sinto cada vez mais abandonada, rejeitada, como se estivesse atrapalhando algo.
Como pedir que me dêem atenção, brinquem comigo, me façam ninar, me balancem em seus colos, me beijem??? Queria pedir que beijassem meu rosto, que segurassem em minha mão, me pegassem no colo e dissessem que me amam. Mas não posso pedir, sei que eles não querem me dar nada disso, pois se quisessem já teriam me dado e eu não precisaria nem pensar em pedir. Espero que me levem para passear, para brincar com outras crianças. Quero me sentir normal, viver no meio de outras pessoas, assim não vou me assustar quando tiver que ir para escola.
Preciso de segurança para sair de casa e ter a certeza que não vão me abandonar, mas na verdade me abandonam todos os dias. Por favor, me diga que eu não preciso ter medo de nada e de ninguém. Vocês me fizeram viver isolada do mundo, escondida, como se eu fosse um pecado a ser escondido. Não podia nem conviver com pessoas da família. Tinha que ser um bicho do mato. Não podia ser apresentada nem para o mundo real, não é pai? O que eu fiz de tão errado?
Quanta vergonha vocês me fizeram sentir. Não sabia nem do quê, mas morria de vergonha de mim mesma. Quem sou eu, como acreditar e caminhar com segurança diante de tanto desprezo e indiferença? Droga, o que vocês fizeram comigo?”
Talvez você se reconheça nesse desabafo, ou então, resolva ouvir o que sua própria criança tem a falar. Não tenha medo, esse processo a princípio pode causar dor, mas não mais do que aquela que você já tem sentido há muito tempo, talvez há anos, e lhe garanto, é libertador.

Para curar suas feridas é necessário que reconheça sua dor. Você não pode curar o que não reconhece! Quando você experimenta o antigo sentimento e fica ao lado da sua criança interior, o trabalho de cura ocorre naturalmente. Se quiser, poderá escrever. Escreva como se fosse essa criança. O que ela pediria? O que diria? Escreva tudo que vier em sua mente, sem julgamentos. Depois leia o que ela pede e procure atendê-la, seja compreensivo com ela, como esperava que tivessem sido quando era criança.

Muitos conflitos são gerados pela expectativa de aprovação e reconhecimento, que perpetuam por anos, nos trazendo decepções e dor. Lembre-se que as carências que sente hoje podem ser resultado da falta de amor e compreensão que não recebeu quando era criança. Isso não quer dizer que nossos pais não sentiam amor, mas provavelmente eles não podiam dar algo que também nunca receberam. E as crianças não captam apenas o que é verbalizado, mas muito mais o que é sentido por eles. E se os pais transferem falta de amor, atenção, carinho, para a criança, é que, além de nunca terem recebido, também não sentem por eles próprios, ou seja, ninguém pode dar alquilo que não tem, o que se torna um círculo vicioso. E nós, como adultos, devemos entender isso, pois a partir do momento que tomamos consciência do que nos aconteceu, o círculo se quebra.

Cabe a você dar o que não recebeu a sua criança, dando-lhe muito carinho e compreensão que necessita, em lugar de esperar que os outros façam isso por você. Mas para dar o que ela precisa, é importante que você a ouça. Deixe que ela fale tudo que sente. Não critique, não julgue, apenas ouça. Depois que ela falar tudo que quer, procure compreender seus sentimentos mais profundos e respeitar cada um deles. Fazendo isso, irá descobrir que o maior e mais profundo amor é aquele que você pode doar a si mesmo! Faça isso por sua criança, faça isso por você!
E se quiser, depois me escreva contando como se sentiu e o que descobriu de si mesmo.



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zago
Rosemeire Zago é psicóloga clínica CRP 06/36.933-0, com abordagem junguiana e especialização em Psicossomática. Estudiosa de Alice Miller e Jung, aprofundou-se no ensaio: `A Psicologia do Arquétipo da Criança Interior´ - 1940.
A base de seu trabalho no atendimento individual de adultos é o resgate da autoestima e amor-próprio, com experiência no processo de reencontrar e cuidar da criança que foi vítima de abuso físico, psicológico e/ou sexual, e ainda hoje contamina a vida do adulto com suas dores.
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