Revolução dos Bichos e a eterna promessa de igualdade

Autor Acid
Assunto AutoajudaAtualizado em 16/07/2025 18:26:58
Dia 25 de junho, foi aniversário de Eric Arthur Blair - o escritor que o mundo conhece como George Orwell. Seu nome já virou adjetivo: orwelliano. Um mundo onde a verdade é manipulada, a vigilância é constante e a liberdade é apenas uma palavra vazia.
Já escrevi um artigo sobre o livro 1984, que estava bastante atual na época. Mas antes dele, Orwell escreveu uma obra que, infelizmente, está ainda mais atual. Se 1984 é um alerta contra o totalitarismo escancarado, o livro A Revolução dos Bichos nos mostra algo mais sutil - e talvez mais próximo de nós: como o poder pode ser corrompido por dentro de um ideal justo.
Publicado em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o livro é uma crítica direta ao stalinismo - mas sua força vai além do contexto histórico. Orwell não escreveu uma fábula apenas sobre a União Soviética. Ele escreveu sobre toda revolução traída por seus líderes; sobre qualquer sistema que começa com esperança e termina em opressão.
Aqui, os protagonistas são os animais de uma granja. Eles se rebelam contra a tirania do humano, o Sr. Jones, tomam o poder e tentam instaurar uma nova ordem, mais justa e igualitária. Nascem então os Sete Mandamentos do Animalismo, escritos na parede do celeiro:
Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
Qualquer coisa que ande sobre quatro patas, ou tenha asas, é amigo.
Nenhum animal usará roupas.
Nenhum animal dormirá em cama.
Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal.
Todos os animais são iguais.
Essa é a "Constituição" dos animais. Mas, com o tempo, os porcos - que lideram o movimento em nome da igualdade (por serem os mais inteligentes da granja) - começam a assumir os privilégios que antes criticavam. Especialmente Napoleão, a figura ditatorial da história. Eles tomam o controle e, lentamente, à noite, vão alterando os mandamentos - sem que ninguém perceba. Ou melhor: sem que ninguém consiga fazer algo a respeito.
Em pouco tempo, os outros animais mal conseguem perceber a diferença entre os novos líderes e os antigos opressores. No fim, sobra apenas uma regra na parede do celeiro: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros."
Essa máxima resume - com ironia e perfeição - a distorção de um ideal. A genialidade de Orwell está em mostrar como até os sonhos mais nobres podem ser manipulados por quem tem sede de poder.
Percebe a semelhança?
Ao ler o livro hoje é impossível não pensar no Brasil. Quantas vezes já vimos pessoas e grupos que, em nome da mudança, chegam ao poder prometendo um novo tempo - mais justo, mais limpo, mais transparente - e, quando nos damos conta, estão repetindo os mesmos vícios que juraram combater?
Será que estamos presos a um ciclo onde os porcos sempre acabam se erguendo sobre duas patas?
E não é difícil perceber as alterações e as injustiças. Nós percebemos, sim. Mas nos curvamos - dóceis - para os porcos da nossa preferência. E, diante da contradição, repetimos: "Ah, mas o outro porco também fazia."
Quando o Brasil parecia caminhar para erradicar a corrupção sistêmica, votamos naquele que se dizia "contra o Centrão" e a favor da Lava Jato. Pois bem: eleito, ele acabou com a Lava Jato com uma canetada (de Bic), entregou o juiz-símbolo da operação aos leões e ainda declarou que "sempre foi Centrão".
Enquanto isso, a Amazônia queimava, índios morriam e a floresta era entregue a madeireiras e garimpeiros. Seu governo usou de idiotas úteis para quebrar o Congresso e ele ainda fez questão de se alinhar com Putin, em plena invasão à Ucrânia. O fato de ainda haver quem pense em votar nele novamente já diz muito sobre o nosso país.
Logo em seguida, veio o "contraponto": alguém que representava a união da centro-esquerda contra a opressão. Prometia respeito à democracia, valorização das mulheres, proteção à Amazônia, aos povos indígenas. Prometeu até, em debate na TV, acabar com os sigilos de 100 anos.
O resultado?
Governo pautando opressão e censura nas redes sociais. Cargos importantes concentrados numa turminha da extrema esquerda. Mulheres escanteadas. Amazônia queimando como nunca. Alinhamento com ditadores do Irã, Rússia e Venezuela. Yanomamis continuam morrendo - mas agora em sigilo. E por falar em sigilo. eles continuaram. Hoje não tem mais artistas protestando contra as queimadas na Amazônia, o genocídios dos índios, a misoginia nas falas do presidente, até porque o governo, cuja base tanto reclamava da Globo, resolveu dar 60% a MAIS de verba publicitária para a emissora que o presidente anterior.
Sabíamos que essa opção ao outro também era ruim - mas, pelo menos, não havia risco de um golpe militar. O que não esperávamos é que ela viesse acompanhada de uma aliança com outro grupo poderoso, capaz de nos empurrar rumo a uma escalada de censura.
O fato de ainda haver quem cogite votar novamente NOS DOIS diz muito sobre o Brasil.
Essa cegueira ideológica está representada no livro de Orwell em Boxer, o cavalo símbolo da fé cega. O trabalhador que repete: "trabalharei mais ainda" e "Napoleão tem sempre razão" como um mantra. Mesmo quando as coisas começam a dar errado, ele prefere acreditar do que questionar.
Boxer é o cidadão comum. Aquele que carrega o país nas costas, enquanto os que decidem seu destino vivem em outra realidade.
Hoje, tem gente nas redes sociais defendendo AUMENTO DE IMPOSTO! A pessoa QUER PAGAR MAIS IMPOSTOS!!!!
E quando Boxer já não serve mais... bom, o destino dele também é um alerta. O quanto vale, afinal, o cidadão para o sistema?
Essa semana mesmo, vimos o governo negar o uso de um avião da FAB para repatriar o corpo de uma brasileira morta na Indonésia, mesmo com toda a comoção do país. A mesma FAB que foi usada este ano para trazer uma política condenada por corrupção no Peru (com sigilo de gastos, claro).
O Itamaraty disse que a lei não permite. Mas e no caso dos jogadores de Chapecó? E pra levar ministro a jogo de futebol ou casamento, pode?
Há uma cena recorrente no livro: os porcos alteram os registros da revolução, os feitos de Snowball (um dos porcos líderes da rebelião original) são apagados, e o passado é constantemente reescrito para servir aos interesses do novo chefe, Napoleão. Isso está acontecendo AGORA, enquanto escrevo:
A negativa do translado da brasileira foi tão ruim para a imagem do governo que, menos de 24h depois da negativa oficial sobre o caso da brasileira, o presidente contradisse o Itamaraty e afirmou que o governo faria o translado.
E isso é só UM exemplo. Qual a versão que vai ficar disso?
Quando ano que vem alguém disser que o governo se recusou a pagar pelo translado até sofrer pressão das redes sociais, o defensor do governo vai dizer que isso é uma fake news. E talvez até algum órgão (o futuro "Ministério da Verdade" que estão aprovando agora) retire o post da internet.
Estamos caminhando pra isso.
Pense: quantas versões diferentes já ouvimos de um mesmo fato político?
Quantos desmentidos em horas? Quantos slogans que mudam de sentido conforme o vento?
A verdade se tornou uma mercadoria, um jogo de números, influência e narrativas.
No livro, as regras pintadas no celeiro vão sendo alteradas discretamente, à noite, para se adequar às vontades dos líderes. A distorção absurda do conceito de igualdade revela como os líderes manipulam a linguagem e os ideais para justificar privilégios e opressão, mantendo a aparência de Justiça.
Lembra algo?
No Brasil, princípios constitucionais são reinterpretados conforme o interesse do momento, leis criadas com intenções nobres que viram instrumentos de opressão e reformas que nascem com a promessa de "modernização" e terminam precarizando a vida de quem já carrega o país nas costas. E sempre com boa retórica, claro.
Afinal, os porcos também sabem discursar.
A pergunta que incomoda é:
Como manter uma sociedade livre se não conseguimos concordar nem sobre os FATOS?
Talvez o que Orwell nos ensine com A Revolução dos Bichos é que o problema não está apenas nas figuras no poder, mas na estrutura que permite que esse poder seja concentrado, na falta de vigilância dos governados e na facilidade com que esquecemos o passado.
Quando não há memória, não há responsabilidade.
E sem responsabilidade, a história se repete - com novos rostos e bandeiras.
O perigo não é o porco que sobe ao poder. É o aplauso resignado de quem já se acostumou ao cheiro da lama. Por isso, talvez a verdadeira pergunta deixada por Orwell em A Revolução dos Bichos não seja apenas "quem está no poder?", mas:
Estamos atentos o suficiente para perceber quando os mandamentos estão sendo reescritos?
Estamos cobrando nossos líderes, ou apenas repetindo mantras como Boxer?
Estamos preservando a memória coletiva ou aceitando a versão mais conveniente da história?
Hoje, ao celebrarmos Orwell, não basta admirá-lo. É preciso escutá-lo.
O desejo de mudança (a tal "revolução") continua vivo, mas soterrado por bobagens e picuinhas que nos distraem do que realmente importa.
A fazenda muda de nome, os animais mudam de forma, mas o ciclo insiste em se repetir.
A questão não é mais se haverá uma nova revolta. A questão é: Será que dessa vez a gente vai lembrar o que esquecemos da última?