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Agora que voltei para casa - Capítulo 2

por Angela Li Volsi em Espiritualidade
Atualizado em 21/05/2004 12:15:23


Mal começamos nossa travessia do Atlântico, a natureza e meus verdes anos se encarregaram de restabelecer a ordem natural das coisas. Sarei rapidamente e comecei a voltar meu interesse para a nova realidade que me cercava. Tudo era novidade: a cabine, o chuveiro, as refeições no restaurante, a imensidão do mar com todas suas mutações. Mas a novidade mais perturbadora era a nova amizade com um companheiro de viagem, cinco anos mais velho do que eu. Embora ele morasse em minha cidade, num bairro próximo, nunca nos tínhamos encontrado, e agora nos tornáramos amigos inseparáveis. Sua inteligência e seu charme compensavam largamente um defeito físico que ele tinha, pois tivera poliomielite em criança, e uma perna tinha ficado menos desenvolvida do que a outra. Esse detalhe, aliás, o tornava para mim um ser único, muito mais interessante e admirável. A amizade se transformou rapidamente no desejo de uma aproximação cada vez maior.

Eu acabara de experimentar pela primeira vez, poucos meses antes de embarcar, a deliciosa sensação do primeiro beijo. Essa primeira experiência já tivera um sabor de fruto proibido pela diferença de idade, pela certeza da desaprovação de meus pais e pela dor da separação iminente. Agora a mesma sensação se repetia numa situação completamente diferente, mas com o mesmo estigma de proibição. Minhas relações familiares se caracterizavam pela ausência absoluta de manifestações de afeto. Qualquer assunto relacionado a amor, sexo, sempre fora tabu e objeto de drásticas repressões. No navio, além da vigilância de minha mãe e de meu irmão, existia um funcionário encarregado de zelar pela moral e os bons costumes. Tudo isso só fazia exacerbar cada vez mais nossa vontade de ficarmos juntos e de driblar a vigilância usando inocentes subterfúgios e códigos por nós inventados.

Essa tensão constante, cercada pela aura mágica que envolvia essa aventura rumo ao desconhecido, fez desses treze dias uma vivência absolutamente irrepetível.
A noite em que o navio deixou a ilha da Madeira, onde tinha ancorado, para prosseguir a viagem em direção ao Brasil, uma explosão de fogos de artifícios saudou nossa partida. Olhando aqueles fogos diante da imensidão do céu estrelado, apoiada ao ombro de meu novo amor, me sentia capaz de ir até o fim do mundo, nada poderia me amedrontar.
A chegada ao porto de Santos, de madrugada, nos fez cair bruscamente no mundo real, com todos seus empecilhos. M. teve de transportar sozinho, sobre os ombros, seu baú, e eu o vi se afastar, mancando, em direção de Deus sabe que destino. Eu mal tive tempo de me despedir, sob o olhar severo e desconfiado de meu pai, que veio nos buscar no porto.

Em São Paulo, me vi relegada à vida doméstica. Para minha mãe teria sido muito mais útil e tranquilizador se, como ela, eu gostasse de me dedicar aos afazeres domésticos. Infelizmente, despachadas as tarefas obrigatórias, eu só queria saber de ler e reler todos os livros que tinha trazido comigo, meus únicos companheiros. Quando me sentia particularmente infeliz, refugiava-me nas lembranças de meu paraíso perdido. Uma das mais recorrentes era aquela dos acampamentos de verão organizados pelo grupo de bandeirantes de que eu fazia parte. Nesses acampamentos, os dias eram ocupados pelas mais diversas e cansativas tarefas necessárias ao nosso sustento e manutenção. Mas à noite vinha a maravilhosa recompensa: sentadas em círculo em volta da fogueira, envolvidas pela magia do céu estrelado e de milhares de vagalumes que dançavam à nossa volta, era o momento de compartilhar nossos talentos. O prazer de exercer toda nossa criatividade aumentava a cumplicidade entre nós e estreitava ainda mais nossos vínculos de amizade. A brusca volta à realidade após esses devaneios fazia-me sentir ainda mais uma estranha, infeliz e incompreendida, dentro e fora de casa.

Os passeios se restringiam a algumas visitas àqueles nossos parentes que já estavam há vários anos aqui instalados, e a alguns amigos de meu pai. M. veio algumas vezes nos visitar, mas logo percebi que suas visitas não eram bem vistas pelos meus pais, que não faziam questão de disfarçar essa rejeição. Eu me sentia prisioneira e desesperada.
Mesmo quando comecei a poder sair por conta própria, me sentia como um ET no meio daquela multidão que me ignorava. Os pensamentos mais negros começaram a rondar minha mente. A distância entre meus pais e eu só fazia aumentar.
Num primeiro momento, pensei que seria possível retomar meus estudos na escola italiana local. Quando fui até lá, feliz por reencontrar um ambiente familiar e a possibilidade de retomar minha atividade predileta, recebi um balde de água fria: o preço da mensalidade, que meu pai nunca poderia (nem ia querer) pagar. A única solução seria encontrar um emprego o mais depressa possível. O primeiro obstáculo era a língua, que eu queria aprender de maneira correta, e não como a maioria dos imigrantes que, pela simples convivência, acabava se contentando em falar um português cheio de erros.

Consegui convencer meu pai a me pagar uma aula particular com uma professora ítalo-brasileira que cobrava um preço razoável. De quebra, poderia combinar com M. para a gente se encontrar no trajeto entre o ônibus e a aula. Fiz alguns meses de aula, mas nunca consegui me encontrar com M., por causa de algum mal-entendido sobre o lugar do encontro, como descobri mais tarde. Isso só fez acentuar meu desejo cada vez maior de uma privacidade que me parecia inalcançável.


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clube Angela Li Volsi é colaboradora nesta seção porque sua história foi selecionada como um grande depoimento de um ser humano que descobriu os caminhos da medicina alternativa como forma de curar as feridas emocionais e físicas. Através de capítulos semanais você vai acompanhar a trajetória desta mulher que, como todos nós, está buscando...
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